1. RIBEIRA DA PRAIA
A freguesia de Água d’Alto (18,44 km2 e 1695 h. -1991), a mais ocidental do concelho de Vila Franca do Campo, situa-se no flanco sul do Maciço Vulcânico do Fogo (Maciço de Água de Pau), e abrange a parte Sudeste da enorme caldeira e da lagoa interior, estendendo-se pela vertente declivosa da montanha até à orla costeira, caracterizada pela existência de arribas elevadas, de uma fajã e de enseadas com praias de areia (Prainha, Praia, Pedreira) .
As encostas desta freguesia são rasgadas por ribeiras de regime temporário e permanente que brotam de inúmeras nascentes das terras altas e correm para o mar, por vezes torrencialmente, drenando bacias hidrográficas paralelas.
A ribeira da Praia constitui a principal rede hidrográfica de Água d’Alto e a sua bacia ocupa todo o eixo central da freguesia, desaguando na fajã da Praia. Devido às suas características, esta área centralizou diferentes estratégias de apropriação por parte dos habitantes do concelho de Vila Franca do Campo e de membros das inovadoras elites agrárias e industriais micaelenses.
1.1. LUGAR DA PRAIA (TRINTA REIS).
No século XVI, o vale da Ribeira da Praia, abaixo dos 150 metros, já era ocupado pelo cultivo de pomares . A cerca de 600 metros da foz, numa zona mais larga e abrigada da margem esquerda da ribeira, implantou-se e cresceu um pequeno povoado de casas térreas (uma porta e duas janelas), que mantiveram coberturas de palha de trigo até à década de 40 do século passado . Em 1991, o lugar da Praia (Trinta Réis) tinha 155 habitantes, repartidos por 37 famílias, e 42 casas sem água canalizada, eletricidade, saneamento básico ou recolha de lixo, situação que foi sendo melhorada até aos nossos dias .
Em 2009, na população ativa (49%), os homens dedicavam-se à construção civil , subsistindo uma produção agrária familiar adaptada às diferentes altitudes e ao declive das encostas (hortaliças, batatas, bananas, inhames, tabaco…) . A Praia chegou a ter uma mercearia, propriedade de Alfredo Mota Araújo, encerrada em 2005, depois de 20 anos de atividade .
Dois fontanários datados (CM 1905 e CM 1942) e um Teatro do Divino Espírito Santo valorizam socioculturalmente o lugar, cuja população dispõe de um Centro de Dia, dependente da Santa Casa da Misericórdia de Vila Franca do Campo .
1.2. OCUPAÇÃO DA FAJÃ DA PRAIA.
Entre a Ponta da Pirâmide (antiga Ponta Ruiva?) e o areal grande, materiais depositados formaram uma fajã atravessada pela ribeira da Praia que aí encontra a sua foz. As particulares condições ambientais deste espaço litoral favoreceram a produção de figos e de uvas, a pesca fluvial e marítima, assim como práticas de lazer, propiciando também o estabelecimento de uma povoação de até sete ou oito casais de nobres e abastados moradores, chamados os Afonsos, da Praia que não terá sobrevivido à crise sísmica de 1599 . Até 2011, a única via de comunicação terrestre, ligando os povoados da costa sul da ilha, passava junto ao areal da Praia e a travessia da ribeira seria melhorada pela construção de uma monumental ponte de pedra, na segunda metade do século XIX.
Ainda no século XVI, na extremidade nascente da praia grande, foi construída uma fortificação (Castelo ou Forte da Praia), com cinco canhoneiras, guarnecidas de peças de artilharia de ferro. Este forte fazia parte do sistema de defesa costeira da ilha e dele não restam vestígios identificáveis . Durante a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), construíram-se fortificações subterrâneas, a nascente e a poente deste areal, das quais restam alguns testemunhos, com valor patrimonial.
Em 1710, o campo muito largo da fajã, em torno do castelo, andava de sesmaria ao povo , mas seria objeto de novas apropriações, tornando-se uma quinta de regalo do 1.º visconde da Praia, Duarte Borges da Câmara Medeiros (1791-1872), proprietário e defensor da causa liberal , derivando do sítio a denominação do título. Na margem direita da ribeira, erguia-se a casa solarenga do visconde, com ermida anexa, evocativa de Jesus Maria e José (ermida do Desterro) (1710?) , abandonada e em ruínas, já na década de oitenta do século XIX .
Nas proximidades do solar, havia um pombal de alvenaria e, junto à ribeira, um largo tanque de recreio, valorizado por belo arco de cantaria, na entrada da água. O tanque era rodeado de pilares de pedra que suportariam uma vedação protetora e decorativa.
Na década de 40 de Oitocentos, o visconde da Praia ajardinou o solar com dragoeiros que trouxe das ilhas Canárias . Estes exemplares arbóreos atingiram um grande porte e mobilizaram o interesse de silvicultores, biólogos, ecologistas, agentes culturais, religiosos e políticos, nos anos 50, 80 e 90 do século passado .
Na margem esquerda da ribeira, João Augusto Medeiros Garoupa (sécs. XIX-XX) tinha uma propriedade vocacionada para a vitivinicultura mas onde também se cultivava milho, batata e fruta. Na quinta, havia uma casa de moradia e apoio à produção agrária, com adega e alambique, que foi melhorada pelo proprietário, servindo de vilegiatura rural e litorânea, sobretudo na época das vindimas. Junto à orla costeira, João Garoupa construiu um barracão de embarcações (Casa da Lancha), onde tinha sido recolhido o São Miguel, o último barco de pesca de boca aberta (30 pés), armando remos e duas velas, atualmente no Museu de Vila Franca do Campo .
O acentuado declive do terreno, dificultando as ligações com a fajã e o transporte do vinho para o comércio de Vila Franca do Campo e de Ponta Delgada, levou à construção de um edifício de adega e alambique (1960-1979?), junto à Estrada Regional, à cota de 50 metros. O íngreme caminho entre a fajã e a estrada foi melhorado por uma calçada de pedra, com vala de escoamento de águas pluviais (calçada dos Galhardos) .
Atualmente, as construções do prédio da família Garoupa, com interesse histórico e patrimonial, encontram-se arruinadas.
Em 1983, as funções lúdicas e turísticas da fajã da Praia, assim como do areal contíguo, ganharam nova dinâmica com a construção do Hotel Bahia Palace, no antigo prédio do Marquês da Praia e de Monforte , por iniciativa da IATH-Indústria Açoreana Turística Hoteleira, S.A.R.L. Após um longo período de indefinição, o hotel foi inaugurado oficialmente a 15 de Abril de 1989 e reinaugurado em 2003 .
No perímetro desta unidade hoteleira, conserva-se a reconstruída ermida de Jesus, Maria e José, o tanque de recreio, no interior do qual foram construídos dois campos de ténis e um armazém, o pombal de alvenaria e três dragoeiros, dois dos quais com identificação de exemplares arbóreos classificados.
Em 1988, foi atribuída a Bandeira Azul da Europa à Praia de Água d’Alto (Areal Grande), reconhecendo e galardoando a qualidade das suas águas e potenciando o uso lúdico e turístico do local .
1.3. MOINHOS DE ÁGUA.
No século XVI, a água da Ribeira da Praia movimentava dois moinhos com dois casais de mós cada um, que abasteciam de farinha de trigo a população de Vila Franca do Campo . Abaixo do povoado e na margem esquerda da ribeira, subsistem as ruínas de dois moinhos situados a montante e a jusante da grande ponte de cantaria, respetivamente a 500 metros e a 250 metros do mar.
1.4. SERRAÇÃO DE MADEIRA E FÁBRICA DE PREGOS.
Na segunda metade do século XIX, a abundância de lenhas nas terras altas e a disponibilidade permanente de energia hídrica favoreceram a instalação de um complexo industrial de serragem de madeira e fábrica de pregos, na margem direita da ribeira, numa cota acima dos 200 metros, do qual ainda restam duas construções arruinadas, uma das quais exibe a data de 1878. Desta forma, a Ribeira da Praia participou no movimento açoriano de industrialização oitocentista, que mecanizou a serração de lenhas para uso doméstico e industrial (fornos de cal, de cerâmica…) e agrupou, em engenhos movidos a água ou a vapor, a produção de trabalhos de madeira e de pregos, materiais necessários à construção civil e ao fornecimento de caixas e malotes para a exportação de laranja .
Na década de 50 do século passado, Vitorino Pacheco (Charamba), um proprietário da Vila da Povoação, construiu a Serragem do Lombo, numa cota acima dos 400 metros, a nascente da ribeira. Esta serração era constituída por dois edifícios de pedra, com telhado de duas águas (oficina e cozinha com forno), tendo em anexo uma fonte datada de 1956. A oficina foi dotada de um motor elétrico alimentado pela Central Nova. Esta serração elétrica produziu sobretudo lenha de peso para uso industrial e foi encerrada quando os terrenos de Vitorino Pacheco foram adquiridos por Teresa Gusmão e transformados em pastagem. O espaço oficinal foi utilizado posteriormente para criação de porcos .
1.5. APROVEITAMENTOS HIDROELÉTRICOS.
A bacia hidrográfica da Ribeira da Praia foi o espaço inovador onde, a partir de 1897, se iniciou o processo de introdução da energia hídrica comercial e da iluminação elétrica pública e particular, não só na ilha de S. Miguel como no arquipélago dos Açores.
Esta mudança na produção e no consumo energéticos deveu-se à iniciativa privada do engenheiro José Cordeiro (1867-1908), fundador da Companhia Michaelense de Iluminação Elétrica (1898-1907) e contou com o apoio esclarecido da Câmara Municipal vilafranquense e do seu presidente, o Dr. António José da Silva Cabral (1863-1933) .
A jusante da cota de 200 metros e numa extensão de 2000 metros, a Ribeira da Praia apresenta três quedas de água sucessivas, com um desnível total de 180 metros . Estes condicionalismos hidrológicos e orográficos, a experiência de um antigo engenho hidráulico naquela zona e o apoio recebido da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, explicam a opção do Eng. José Cordeiro pela ribeira da Praia, onde construiria a primeira central hidroelétrica dos Açores (atualmente em ruínas), designada por Fábrica da Vila (1900-1972). Junto das referidas quedas de água foram edificadas posteriormente a Fábrica da Cidade (1904-1974), da qual só restam ruínas, um tanque albufeira em cimento armado (1906), a Fábrica da Praia (1911-1974) (Central Museu, Museu da Eletricidade) e a Fábrica Nova (1927-) . Em 1991, a EDA inaugurou o mais recente aproveitamento do sistema da Praia (Nova Central da Praia), situado na Achada de Baixo e já perto da fajã , o que contribuiu para diminuir drasticamente o caudal da ribeira.
De sul para norte, os aproveitamentos hidroelétricos sucedem-se da seguinte forma: Nova Central da Praia (5.ª central, 1991-), Central da Praia (3.ª central, 1911-1974), Central da Vila (1.ª central, 1900-1972), Central da Cidade (2.ª central, 1904-1974), Tanque albufeira (1906-), Central Nova (4.ª central, 1927-).
1.6. AGRO-INDÚSTRIA DE ESPADANA NO PICO DA PRAIA.
Na década de 20 do século passado, desenvolveu-se uma agro-indústria de espadana (Phormium tenax) (tabúa, linho da Nova Zelândia, linho da Rússia), cujas plantações, situadas à direita da ribeira e acima da cota de 300 metros, pertenciam aos herdeiros do empresário e proprietário rural Clemente Joaquim da Costa (1819-1906) , ultrapassando os 480 alqueires (8 moios), em 1926 .
A fibra era preparada na Fábrica de desfibração de espadana da Praia (designação oficial), instalada nos referidos terrenos pela Empreza Industrial Limitada . Esta sociedade, criada em 1919, com sede em Ponta Delgada, teve um importante papel na renovação da indústria micaelense, construindo na Ribeirinha (Ribeira Grande) a Fábrica de Fiação e Tecidos de Linho (1923-1988) e, em anexo, a Fábrica de Cordoaria de espadana .
Para montar a fábrica, a empresa recorreu a duas casas de pedra com cozinha e forno, já existentes no local, onde instalou o escritório, o armazém e os dormitórios, construindo um grande edifício de madeira de tábua trincada, com telhado de duas águas, destinado aos trabalhos de desfibração, limpeza e enfardamento e também nove tanques para lavagem da fibra.
Na Fábrica do linho do Pico da Praia, conforme era conhecida, a transformação da folha de espadana em fibra e o enfardamento final recorriam a máquinas elétricas (duas desfibradeiras, duas limpadeiras, uma enfardadeira), alimentadas pela Central Nova (Central dos Lagos), a partir de 1927. A água para os tanques de lavagem da fibra provinha da nascente da Ribeira dos Passarinhos.
Na década de 40, chegaram a trabalhar diariamente nesta agro-indústria 125 operários, homens e mulheres, das freguesias de Água de Pau, Ribeira Chã, Água d’Alto e Vila Franca do Campo. A fábrica deixou de laborar no princípio da década de 60, quando a exportação deixou de ser rentável e, do complexo de construções, restam apenas ruínas de importante valor arqueológico .
1.7. SISTEMA DE CAPTAÇÃO DE ÁGUA DA RIBEIRA DA PRAIA (1998-).
A fim de garantir o abastecimento público de água, a Câmara Municipal de Ponta Delgada foi obrigada a recorrer às abundantes nascentes do Maciço do Fogo, inaugurando, em 1888, um primeiro sistema de captação, a partir da Grota do Lanço, situada acima de Água de Pau, no concelho da Lagoa.
De 1975 a 1980, o aumento de consumo impôs o aproveitamento de novos caudais, na ribeira dos Passarinhos, na galeria de mina da ribeira das Três Voltas e, por meio de um sifão, no canal de distribuição, a montante da Central Nova.
No sentido de melhorar a salubridade e aumentar significativamente o volume dos caudais, o sistema foi alargado ao vale da ribeira da Praia, captando as nascentes oriundas da filtragem natural da Lagoa do Fogo, graças a difíceis trabalhos que se prolongaram de 1984 a 1998 .
Desta forma, os Serviços Municipalizados de Água e Saneamento de Ponta Delgada acabaram por assumir, de forma eficaz, a gestão dos acessos na zona das nascentes da rede hidrográfica da ribeira da Praia.
1.8. PARQUE ESCUTISTA DOS LAGOS (1984-)
Na proximidade do tanque albufeira do pico da Praia, o Núcleo de São Miguel do Corpo Nacional de Escutas (Escutismo Católico Português-Região Açores) criou o Parque Escutista dos Lagos, vocacionado para o desenvolvimento de atividades lúdicas e formativas. Este espaço, onde se projetava instalar uma lixeira, foi doado pela Câmara Municipal ao Agrupamento 436 de Vila Franca do Campo, em 1984.
O Parque Escutista foi palco de acampamentos do Núcleo (ACNUC), em 1985, 1995, 2000 e 2006, de atividades destinadas aos Lobitos (LOBICIRCO, 1991), de um Acampamento Regional de Alcateias (ACARAL, 2003) e de dois Jamborees Açorianos (VIII, 1988 e XII, 2009), iniciativas que mobilizaram muitas centenas de jovens.
Por ocasião do XII Jamboree Açoriano, o Parque foi objeto de vários melhoramentos por parte da Câmara Municipal, reorganizando-se o espaço de acampamento e construindo-se um edifício de apoio .
Marques e Madeira, 1977: 138-145. Diversidade (A) na orla costeira … 2009.
Frutuoso, 1981: 46.
R. Martins, 1996: 84. L. Cravinho, 2000: 7.
Plano diretor, 1992: quadro da população por lugar.
Sousa, 2009: 10-14.
Rodrigues, 2009: 34, 35.
Sousa, 2009: 15.
Idem.
Frutuoso, 1981: 45.
U. Dias, 1944-48, 7: 220-225; 1949: 234, 235.
U. Dias, 1944-48, 7: 221.
Álbum… 1903: 55, 56.
U. Dias, 1949: 232-237.
Walker, 1886: 273, 274.
Walker, 1886: 273, 274.
Emiliano Costa, 1953: 125 (refere uma linha de dragoeiros) e Estampa III.
Côrtes-Rodrigues, 1974:149-153; R. Martins, 2003: 43.
Côrtes-Rodrigues, 1974: 152, 153. Rodrigues, 2009: 16, 17 e 2011.
Ao 1.º visconde da Praia sucederia o seu filho António Borges de Medeiros Dias da Câmara de Sousa (1829-1903), 2.º visconde da Praia, conde (1884) e 1.º Marquês da Praia e de Monforte (1890). Álbum… 1903: 55, 56.
R. Costa, 1989: 93, 106, 107.
R. Costa, 1989: 104.
Frutuoso, 1981: 40, 45. U. Dias, 1944-1948, 8: 39, 40.
F. Dias, 2008: 36, 37, 52, 53, 89 e segs.
Depoimentos de Gilberto Correia (1935-), Água d’Alto, e Patrício Dias (1975-), Vila Franca do Campo.
Simas, 1997: 59-91.
Revista…: 20.
Simas, 1997: 94-103, 107-114. Motta, 1970.
Revista…: 25.
Supico, 1995, 2: 468, 469. F. Dias, 2008: 179-188, 228-230.
Estas plantações eram as segundas maiores da ilha, logo a seguir às de Gustavo de Medeiros, na Povoação. “Cultura (A) da espadana …”, 1926: 1. Enes, 1994: 149. Segundo a tradição oral, as terras de Clemente Costa teriam sido adquiridas a um proprietário de nome Estanqueiro.
“Cultura (A) da espadana …”, 1926: 2. Publicidade da empresa.
A partir de 1929, a Fábrica de Fiação e Tecidos de Linho passou a denominar-se Fiação e Tecelagem Michaelense, Lda., devido à associação da Empreza Industrial, Lda. com a firma Bensaúde & Companhia, Lda. que passou a gerir a referida indústria. Arquivo do Centro de Estudos Etnológicos da Universidade dos Açores. Enes, 1994: 154, 155.
Roteiro …2003: 10.
J. Nemésio, 2011. Sítio da internet.
http://www.cne-jnsm.com/artigos/artigos.aspx?CodArtigo=HISTORIA. Depoimento de Patrício Dias (1975-), Vila Franca do Campo.
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