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Fajãs Manuel Teixeira Brasil
 
Fajãs, fajãs dos Açores; majestoso colar de pérolas, flutuando à tona do oceano, agarrando-se ao corpo das ilhas, quais náufragos a tábua de salvação.
São fajãs os pequeninos lugarejos, que a topografia balizou com a imponente rocha a montante, e o colossal oceano a jusante e os quais o povo batizou de fajãs. Continua...
Manuel Teixeira Brasil
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Fajãs, fajãs dos Açores; majestoso colar de pérolas, flutuando à tona do oceano, agarrando-se ao corpo das ilhas, quais náufragos a tábua de salvação.
São fajãs os pequeninos lugarejos, que a topografia balizou com a imponente rocha a montante, e o colossal oceano a jusante e os quais o povo batizou de fajãs.
São fajãs, que a natureza criou com cheias, os terramotos, as derrocadas, os abatimentos e a erosão dos tempos.
São fajãs, que a natureza privilegiou com a presença do mar, o benigno clima, a fertilidade do exíguo solo, as deslumbrantes paisagens, a importante biodiversidade e os variados ecossistemas.
São fajãs, que o homem arroteou e onde construiu casas, adegas e abrigos, onde armou socalcos, delineou cerrados e nateiros, onde dispões travesses e estruturou currais.
São fajãs, onde o fascínio da beleza, a imponência da rocha e a magia do mar, desde os primórdios do povoamento subjugaram o açoriano em relação ao perigo, à exiguidade da parcela e até porque não, às parcas condições de vida.
Nestas fajãs, o açoriano nasceu e morreu, amou e odiou, sonhou e desesperou, conheceu a alegria e a tristeza, a coragem e o medo, e conviveu com as crises e os flagelos.
Nestas fajãs, o açoriano, qual pigmeu mediu-se titanicamente desde o início do povoamento com a rocha colossal e o imenso oceano.
A estas fajãs, o Açoriano cravou-lhe na pele, o seu património construído, que regou e argamassou com o seu suor e sangue.
A partir destas fajãs, o Açoriano cavalgou o sonho, na pesca e no contrabando ou de salto nos navios que rumavam à caça da baleia ou às Américas em busca de dias melhores, de fortuna e de um mais próspero estatuto para si e para os seus filhos.
Estas são em parte, as nossas fajãs, com mais ou menos saudades, com mais ou menos alegria.
Aqui, nestas pequenas plataformas à beira mar plantadas, se instalou praticamente desde o início do povoamento, o açoriano, que com esforço, suor, lágrimas, sangue e por vezes a própria vida construi-o um património deveras impressionante.
Este consta dos milhões de metros cúbicos de rocha e pedra, que esses antepassados mobilizaram para construírem as gigantescas escadarias de socalcos, as canadas e os trilhos, que tatuam a pele das nossas gentes.
Hoje infelizmente a incúria dos homens, o tempo e a natureza vão inexoravelmente destruindo esse património. Os tremores de terra e os desabamentos ora ou aluem, ora o esborralham, ora o levam consigo na derrocada. O homem por sua vez, ora o destrói ora o abandona. E a natureza como que envergonhada destes procedimentos vai-o cobrindo com o seu manto verde. Ao mesmo tempo que a ação dos seus elementos vão lentamente mastigando o que ficou para trás, daquilo que durante séculos o homem construi-o.
Muitos poucos, mas mesmos, muitos poucos milhares de habitantes, sem o auxílio da máquina, apenas com as suas próprias mãos, força muscular, e as rudimentares alfaias conseguiram em apenas quatro séculos levar a cabo, essa gigantesca tarefa.
Mas o que mais nos fascina, é como estes nossos ascendentes, na maioria das vezes sem qualquer instrução, sem nunca terem saído da ilha, e até nalguns casos sem nunca terem chegado às vilas mais próximas, conseguiram dar sempre um enquadramento perfeito às suas obras. Talvez por ali nascerem, por ali viverem e por ali receberem o testemunho dos seus antepassados tinham a perfeita compreensão, do material, do meio, do espaço e do tempo.
Mas as fajãs Açorianas na sua grande maioria, locais isolados, pela rocha e pelo oceano, têm acessos por terra algumas vezes quase intransponíveis e pelo mar sujeitos sempre à bonança. Acessos que o Açoriano qual verdadeiro alpinista pendurado no abismo construi-o através de arranhões, que deu na rocha e na pele da ilha.
Por esta teia de trilhos, o Açoriano circulou de e para a fajã. Através deles desfrutou os frutos que recebera da terra e do mar. Através deles transportou os filhos no ventre, os familiares e amigos doentes na manta ou os seus defuntos na urna para o cemitério. Ainda através destes, fez as mudas para fugir aos rigores da invernia dos povoados mais expostos para a fajã.
Estas veias que durante séculos transportaram o fluido humano, de e para a fajã, que tanto trabalho deu a construir aos nossos antepassados, que tem em muitos casos delineamentos espetaculares, que por vezes constituem gigantescas escadarias, como o trilho dos degraus da fajã redonda, dois mil e trezentos degraus. Que noutros sítios são autênticos percursos de alpinistas como por exemplo os da Fajã do Cardoso.
Nestes algumas vezes o açoriano deu o último suspiro, como o atestam as cruzes a assinalar, o acontecimento fatídico. Aqui também o Açoriano amou mas também aqui fez esperas e violentou o seu semelhante em abomináveis atos animalescos, que o homem nem sempre domina.
Também nestes, nas temerosas noites, o imaginário do homem crente no fantástico, se debateu com as feitiçarias, os lobisomens, o cão sujo e as almas do outro mundo. Havia os sítios assombrados em todos os trilhos, onde os mais medrosos, não passavam de noite sozinhos e os mais temeratos, quando o faziam era com o coração bem apertado. Por estes trilhos o fajansense esperava o estafeta que lhe trazia o correio, o familiar emigrante que regressava de longínquas paragens cheio de riqueza e prosperidade ou os de fora da fajã qua a esta desciam com frequência e regularidade.
O trilho era o descanso da vista do fajansense, que a todo o momento que o bispava na anciã de lombrigar os transeuntes que saracoteando o seu percurso na rocha, ora aqui se expondo ora ali desaparecendo, quais náufragos em escarcéu de mar tormentoso.
Estes trilhos eram o descanso, eram sem duvida as veias e os músculos das nossas fajãs, que as prendiam às outras fajãs, que as ligavam ao coração da ilha. Hoje foram alguns deles mutilados e ocupados pelos caminhos, a maioria abandonados e apenas restam alguns ainda em uso.
Mas as fajãs dos Açores, não se esgotam de modo algum na sua arquitetura ou nos seus trilhos.
A agricultura foi o primeiro elemento aglutinador do interesse do homem Açoriano por estes recantos, e está na base de todo um viver bem fajansense, que durante séculos foi levado a cabo em algumas destas. Este viver prendia-se com a auto suficiência, que o homem fajansense conseguia na sua fajã. Da rocha a montante e dos náufragos que a jusante davam à costa, colhia a madeira que necessitava para a casa, barco, alfaias agrícolas, utensílios, mobiliário e a lenha que lhe servia de combustível para cozinhar e aquecer alimentos.
Na rocha a montante criava cabras e ovelhas que lhe forneciam leite, carne, peles e lã e nas fontes que jorravam da mesma cultivava os inhames que lhe serviam de alimento.
Nos cerrados, nateiros e cômoros cultivava os cerais, as hortícolas, as fruteiras e a vinha e por vezes aqui e acolá num campo de linho.
No palheiro junto à casa, no curral e no abrigo estavam a vaca, o porco e o carneiro, que forneciam leite, carne e o estrume.
Na ribeira o moinho de água, na loja a atafona ou a mó de mão moíam o grão que as mulheres transformavam em pão.
Nos poços das ribeiras e das fontes enlagoavam o linho, que juntamente com a lã, as tecedeiras urdiam e tapavam as teias que davam o tecido para o bragal e o enxoval.
Do mar retirava o peixe, do calhau as lapas e caranguejos para comer e o sargaço para adubar as terras.
Exercia as profissões necessárias às conveniências da fajã, e por isso mesmo adaptara a etnografia às suas necessidades.
O seu lazer passava-o em jogos simples, a contar contos, em amenas cavaqueiras ou a tocar, cantar ou bailar.
O boi amarrava-se pelo corno e o homem pela sua palavra, não havia lugar à cobardia e à falsidade porque estas eram desprezadas.
A honra era o estatuto do homem rico ou pobre, a sua cartilha de princípios, o seu código de direito e deveres.
O trabalho era uma honra, o desprezo por ele uma afronta, um mau vício um pecado.
Homem bom não tinha vícios, mulher séria não tinha mácula.
A entreajuda e a troca eram o pão nosso de cada dia e o dinheiro quase que não existia.
A grande ambição do chefe de família era a de nunca lhe faltar pão sobre a mesa. Os seus ascendentes eram a sua riqueza, o enfrentar a velhice não o incomodava, porque esse objetivo tinha-o ele bem controlado, os filhos eram o seu amparo.
E por tudo isto trabalhou com afinco de sola a sol, durante séculos sem nunca esmorecer diante da imponente rocha, no meio das pesadas pedras, à ilharga do majestoso oceano.
Deste modo conviveu com as derrocadas, salvaguardou-se das enchentes, temeu os tremores de terra mas não fugiu.
Como crente rezou aos trovões, às águas desmandadas, aos abalos de terra, às enchentes, às quebradas, às secas e às epidemias.
Guardou os dias santos e de guarda, festejou os dias assinalados e respeitou e honrou os seus mortos.
Aos filhos ensinou-lhes os mesmos preceitos que recebera dos seus antepassados, educando-os na sua religião na humildade, honestidade e verdade.
Por tudo isto criou o seu meio, um meio pequeno, um meio limitado entre a rocha e o mar, um meio mágico, um meio por vezes hostil e violento. Com muito esforço enfeitou-o com milhões de paredes, milhões de socalcos, com muitas canadas, trilhos, caminhos, casas, adegas e ermidas. Mas ainda não contente com este esforço deu-lhe vida, pôs as crianças a correrem e a subirem paredes, a saltarem nas canadas e nos trilhos, a chilrearem nas suas brincadeiras quais avezinhas alegres e felizes.
Já feito o homem da fajã fez-se ao mar, embarcando de salto para o mundo desconhecido à procura da aventura, de um ganho melhor, que lhe permitisse uma mais-valia diferente, que lhe desse o futuro quando ele voltasse à sua fajã, um outro estatuto. E por tudo isto causou a admiração de fora da fajã, que ora passavam de barco e pasmavam ora se abeiravam da rocha e olhavam para baixo para o precipício, e extasiavam com os maravilhosos presépios.
Durante séculos fervilhou esta vida nestas pequeninas ilhas dentro da ilha, nomeadamente em São Jorge, que é a verdadeira ilha pátria das fajãs.
No entanto a partir do século XIX, com as emigrações a aumentarem a dinâmica fajansense tem vindo em decrescendo e em São Jorge sofreu um brutal golpe com o terramoto de um e Janeiro de 1980. O qual em nosso entender fechou um ciclo na dinâmica das fajãs daquela ilha abrindo-se outro, aquele que se vive no presente nas fajãs Açorianas, verdadeiras pérolas fossilizadas da lendária Atlântida.

Manuel Teixeira Brasil