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Pedra-que-Pica
ILHA DE SANTA MARIA
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Finalmente, Santa Maria faz jus ao seu lema de “ilha do Sol”. Com tempo magnífico, vamos hoje à “Pedra-que-Pica”. Continua...
Sérgio Ávila - Biólogo
CIBIO-Açores/Departamento de Biologia
Universidade dos Açores
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Biólogo – Universidade dos Açores
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18 de Junho de 2006

Finalmente, Santa Maria faz jus ao seu lema de “ilha do Sol”. Com tempo magnífico, vamos hoje à “Pedra-que-Pica”. Esta é a minha jazida fetiche. Em Outubro de 1999 numa das minhas deslocações de trabalho ao Faial, falava com o Frederico Cardigos, colega de investigação no DOP (Departamento de Oceanografia e Pescas da Universidade dos Açores) sobre os meus planos de investigar os fósseis de Santa Maria.
“Vou aproveitar este ano o facto de a minha mulher lá estar a dar aulas, para ir assiduamente a Santa Maria” – disse-lhe eu. “Gostava também de explorar algumas das jazidas ao longo da costa, mas sem barco e sem contactos na ilha, vai ser difícil” – lamentava-me.
“Quanto a isso, não há problema! Falas com o Rui Costa, o presidente do Clube Naval de Santa Maria, e pergunta-lhe da possibilidade de o Armindo te acompanhar nessas saídas de mar” – aconselhou-me o Frederico.
Em boa hora o fez, e em melhor ainda, entrei em contacto com o Rui Costa. Sempre disponível e atencioso, providenciou desde a primeira hora para que, sempre que eu o solicitasse, o barco do Clube Naval estivesse disponível para as minhas saídas de campo. A primeira que fiz com o Armindo, foi logo em Novembro de 1999 e o destino foi precisamente a “Pedra-que-Pica”. Nessa altura, fomos os dois num pequeno zebro vermelho com cerca de 2,5 m de comprimento e um motor de somente 15 cavalos-vapor, o “Jorge Gomes”. Levámos perto de uma hora a lá chegar, mas nem dei pelo tempo a passar, deslumbrado que ia, a apreciar a costa sul de Santa Maria. Quando saltei em terra, numa altura em que a maré ainda estava a descer, levava a mochila às costas e o martelo de paleontólogo numa das mãos. De início, nem me apercebi muito bem do que estava a pisar, pois a erosão provocada pelo mar, bem como algumas algas dispersas, disfarçavam aquilo que, alguns metros mais adiante, se tornou de tal forma evidente, que me fez parar boquiaberto e começar aos pulos de excitação. O Armindo deve ter pensado que eu não regulava lá muito bem, mas na altura nem pensei nisso… Aos meus pés desenrolava-se um espectáculo inacreditável, para os meus ainda jovens olhos de paleontólogo: para onde quer que olhasse, num raio de cerca de 20-30 metros, só via fósseis e mais fósseis, alguns de dimensões enormes (cerca de 25 cm de diâmetro). Aprendi depois que esta acumulação massiva de conchas tem o nome técnico de lumachela, sendo o resultado de correntes submarinas ou de tempestades que, em locais propícios levam ao acumular de milhares de conchas.
Era para este local fantástico que hoje a expedição se dirigia. Saímos do porto de Vila do Porto no “João Castro”, um fibra de vidro, conduzidos pelo Paulo Luís e pelo Hugo Ponte. Passámos ao largo da Praia Formosa, avistámos a Malbusca que seria visitada no dia seguinte, e aproximámo-nos da extremidade sudeste da ilha. A estibordo, ou seja, à nossa esquerda, um bando de garajaus esvoaçava freneticamente, mergulhando e caçando peixes. Em várias baías, quase desde o início da arriba até cá abaixo junto ao mar, socalcos de vinha talhados na encosta espraiavam-se dolentemente, com pequenas adegas sobranceiras ao mar. Imagino a canseira que será fazer a vindima nestes locais…
À proa sobressaía já, altaneiro no seu posto de ninho de águia, o Farol de Gonçalo Velho, na Ponta do Castelo. A “Pedra-que-Pica” fica localizada cerca de 500 metros para oeste da Ponta do Castelo, e parece uma língua de areia branca, sem interesse por aí além, para quem não a conhece e a avista ao longe pela primeira vez. Se não se for com atenção à costa, pode mesmo passar completamente desapercebida no meio da deslumbrante paisagem.
Mais uma vez, houve que proceder a duas viagens, para colocar toda a gente na jazida. Por volta das 10:30, chegaram os passageiros da segunda leva, sempre animados pela contagiante boa-disposição do Carlos. Nesse dia, o almoço seria frugal, pois não havia restaurantes nas imediações. De imediato demos início aos trabalhos: recolhas qualitativas e respectiva identificação, com a sábia colaboração do Sérgio Raffi, renomado especialista em bivalves Miocénicos e Pliocénicos; medição de vários perfis estratigráficos em diversos pontos da jazida, estes efectuados pelo Michael Kirby, para posterior construção de uma coluna estratigráfica geral da jazida; interpretação paleoecológica efectuada pelo Andreas Kroh, Carlos Marques da Silva e Mário Cachão; e delimitação total da jazida através de GPS, trabalho pacientemente efectuado pelo Mário Cachão. Toda esta frenética actividade, “congelada” para a posteridade nas fotos do Pedro Monteiro, e registada pela câmara do José Carreiro.
A lumachela da “Pedra-que-Pica” tem uma espessura de sedimentos que varia entre os 7,5 m e os 40 m, intercalados entre duas escoadas lávicas, e uma área de cerca de 1.710 m2. A escoada lávica basal que se prolonga debaixo de água, e os sedimentos que lhe estão por cima, pertencem ao Complexo do Touril, ao passo que a escoada lávica superior pertence ao Complexo Facho-Pico Alto. Uma das dúvidas que iríamos tirar mais tarde nesse dia, era precisamente saber o que ocorria abaixo da linha de água: os sedimentos ocorreriam também dentro de água? Para além da incrível quantidade de bivalves, alguns fossilizados ainda com as duas valvas ligadas, era a qualidade dos fósseis o que mais nos chamava a atenção. Os detalhes da microescultura da concha eram ainda perfeitamente visíveis em muitos dos exemplares de bivalves e de equinodermes (ouriços, em especial). As cracas (pelo menos uma espécie, ainda não identificada) eram também muito abundantes, bem como algumas esponjas e briozoários, estes menos frequentes. Raros eram os corais solitários, dos quais somente encontrámos marcas deixadas pela base dos pólipos. Dados quantitativos de moluscos, obtidos após contagem dos indivíduos de cada espécie presentes em quadrados de 80 cm de lado, indicam que as espécies mais comuns de bivalves são o espectacular e enorme Gigantopecten latissimus, o endémico Chlamys hartungi, o Pecten dunkeri, os muito semelhantes Chlamys opercularis e Chlamys macrotis, a irregular Lopha plicatuloides, a superabundante “Ostraea”, o Manupecten pesfelis e os mais raros Spondylus sp., Hinnites crispus e Crassadoma sp.
Quer o registo fóssil, quer as evidências sedimentológicas, apontam no sentido de os depósitos da “Pedra-que-Pica” representarem uma sequência regressiva, isto é, se terem formado a uma pequena profundidade e aquando de uma descida do nível das águas do mar. A lumachela (ou “coquina”), com as suas grandes conchas de Gigantopecten, entre outras, representa um ou mais depósitos formados aquando de tempestades, durante as quais a maior parte da areia foi retirada, restando precisamente estas grandes conchas, por serem mais pesadas. Outra hipótese de formação da lumachela, relaciona a sua origem com correntes marinhas locais que levaram ao acumular maciço de conchas neste local. Nesta altura, ainda não sabemos qual é a mais plausível. Por seu turno, as lavas em almofada, que ocorrem na base da escoada em que assentam os níveis fossilíferos, indicam um vulcanismo submarino.
(…)

Extraído de:
“Açores O Império dos Fósseis” (Sérgio Ávila & Pedro Monteiro, 2009; Edições Caixotim).

Sérgio Ávila - Biólogo
CIBIO-Açores/Departamento de Biologia. Universidade dos Açores