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Parque da Energia Hídrica da Ribeira da Praia Rui de Sousa Martins
ILHA DE SÃO MIGUEL
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Rui de Sousa Martins Vídeo
Professor de Antropologia Cultural da Universidade dos Açores
Parque da Energia Hídrica
da Ribeira da Praia

Rui de Sousa Martins
Professor de Antropologia Cultural da Universidade dos Açores
Director do Museu de Vila Franca do Campo
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Parque da Energia Hídrica
da Ribeira da Praia

Água d'Alto, São Miguel, Açores
Rui de Sousa Martins

2. PROCESSOS DE PATRIMONIALIZAÇÃO NA BACIA DA RIBEIRA DA PRAIA.

A bacia da Ribeira da Praia tem desencadeado vários processos de patrimonialização, envolvendo entidades locais, regionais, nacionais e internacionais que selecionaram objetos de natureza diversa, situados em contextos ecológicos distintos, investindo-os de valor patrimonial. Estes recursos polarizaram relações sociais e comunicacionais, interesses diferentes, numerosa legislação, desencadeando novas formas de gestão da natureza, da cultura e da paisagem.


2.1. CLASSIFICAÇÕES E RECLASSIFICAÇÕES AMBIENTAIS DA LAGOA DO FOGO (1974-2008).

Em 1974, a Lagoa do Fogo foi classificada como Reserva Natural, devido ao seu valor paisagístico, ficando o seu perímetro sujeito ao regime florestal. A área delimitada abrangeu as nascentes da rede hidrográfica da Ribeira da Praia, situadas nas encostas do Pico da Barrosa (949 m.) e do Pico da Vela (862 m.) (Decreto n.º 152/74 de 15 de Abril) 1.

Devido ao valor excecional dos seus ecossistemas e habitats, a Lagoa do Fogo foi também classificada pelo Governo Regional, em 2001, como Sítio de Importância Comunitária (SIC), passando a integrar a Rede Natura 2000 2. Esta classificação, que visava requalificar e valorizar o património natural e a biodiversidade (plantas endémicas, aves marinhas e terrestres), foi feita no cumprimento das diretivas comunitárias da União Europeia.

O perímetro do SIC é bastante inferior ao da reserva natural, mas abrange igualmente as nascentes da rede hidrográfica da bacia da Praia.

Em 1982, o poder autonómico criou a Reserva Natural da Lagoa do Fogo (Dec. Reg. N.º 10/82/A de 18 de Junho) e, em 2008, na sequência de profundas mudanças na política ambiental açoriana, o Governo Regional dos Açores reclassificou-a, integrando-a no Parque Natural da ilha de São Miguel [alínea b), do N.º 1, do Artigo 4º, Artigos 7º e 8º do Dec. Leg. Reg. N.º 19/2008/A de 25 de Junho].

O mesmo diploma legal também reclassificou a Reserva Natural da Lagoa do Fogo na área protegida para a gestão de habitats ou espécies da Serra de Água de Pau, integrando os objetivos e os limites territoriais do Sitio de Importância Comunitária (SIC) [alínea b), do N.º 1, e alínea b) do N.º 2, do Artigo 14º e artigo16º do Dec. Leg. Reg. N.º 19/2008/A de 25 de Junho].


2.2 CLASSIFICAÇÃO DOS QUATRO DRAGOEIROS DA FAJÃ DA PRAIA – 1982.

Em 1982 e 1983, a construção do Hotel Bahia Palace alertou os defensores do património natural, nomeadamente o Dr. Gerald Le Grand, da Universidade dos Açores, para a necessidade de se preservar o conjunto de quatro grandes dragoeiros. Os dragoeiros [Dracaena draco (L.) L.], cuja valiosa resina (sangue-de-drago) foi utilizada como substância corante e medicamento, têm sido considerados uma espécie endémica das ilhas da Macaronésia (Açores, Madeira, Canárias e cabo Verde), existindo também no Sul de Marrocos, muito embora alguns autores defendam que se trata de uma espécie introduzida com fins predominantemente ornamentais 3.

Os quatro dragoeiros da Praia, originários das ilhas Canárias, foram classificados pelo Governo Regional em 1982, tratando-se da primeira legislação açoriana sobre a preservação da natureza 4. A proteção legal foi justificada pela raridade da espécie, pelo grande porte dos referidos exemplares, traduzindo existência multissecular, e pelo seu valor panorâmico (Dc. Reg. N.º 8/82/A de 14 de Julho). Posteriormente, estas espécies protegidas foram muito afetadas por intempéries.

A 30 de Outubro de 1994, o Padre João Caetano Flores, responsável pelo Centro de Catequese e Cultura da Ribeira Chã, ativou o processo de patrimonialização dos dragoeiros dos Açores, realizando uma festa celebrativa, no decurso da qual, a professora Maria Leonor Soares de Medeiros Albergaria Bicudo, recitou a poesia de sua autoria, Os dragoeiros da Praia 5.

2.3 CLASSIFICAÇÃO (1982) E DESCLASSIFICAÇÃO (2008) DO LUGAR DA PRAIA (TRINTA REIS).

Em 1982, o Governo Regional classificou também o Lugar da Praia, no âmbito de uma política do ambiente que assumia como tarefa prioritária a defesa do património paisagístico da Região Autónoma dos Açores (Dec. Reg. N.º 13/82/A de 7 de Julho).

Esta classificação foi justificada por três ordens de razões: por um lado, tratava-se de um aglomerado de casas bem integradas na paisagem, cortadas por velhas ruas calcetadas, debruçando-se sobre uma ribeira, a poucas centenas de metros do mar e, por outro, atendia-se ao seu estado de conservação e à localização. Além disso, o Lugar da Praia foi representado miticamente como testemunho de um tipo de ocupação humana que se prende com épocas remotas próximas do primeiro povoamento da ilha.

Por meio da proteção legal, e no quadro de um plano paisagístico para os Açores, pretendia-se melhorar as condições de vida dos habitantes, beneficiar o enquadramento paisagístico e ambiental, manter a tipologia das habitações (estrutura, escala, materiais e cores), assim como o traçado e o revestimento dos arruamentos existentes e relançar também os valores da cultura local.

Consequentemente, a patrimonialização jurídica do Lugar do Praia obedeceu a valores predominantemente paisagísticos, indissociáveis do desenvolvimento económico e social dos seus habitantes. Além disso, criava-se um recurso turístico que ajudaria a sustentar o funcionamento do Hotel Bahia Palace e a oferta turística do concelho de Vila Franca do Campo.

De salientar que os limites da área classificada do Lugar da Praia incluíam o aglomerado populacional e o curso da ribeira até à foz, englobando as ruínas dos dois moinhos de água existentes na margem esquerda e o barracão de embarcações construído junto à orla marítima.

No entanto, a partir de 1993, a Direção Regional do Ambiente entendeu que a criação de Áreas Protegidas de Interesse Regional (Parque regional, Reserva natural, Parque natural, Monumentos natural, Paisagem protegida) obrigaria à reclassificação ou à desclassificação das áreas protegidas existentes nos Açores. Consequentemente, a classificação do Lugar da Praia deixara de ter consagração legal.

Em 2004, a Direção Regional da Cultura emitiu o parecer que se devia revogar o diploma que classificou o Lugar da Praia, uma vez que entretanto já perdera os valores que fundamentaram a decisão subjacente à sua classificação 6.

Este processo de desqualificação e desclassificação institucional do Lugar da Praia e do seu relevante património industrial, hidroelétrico e molinológico culminou, em 2008, com a revogação do Decreto Regional 13/82/A de 7 de Julho, pela legislação que criou o Parque Natural da ilha de São Miguel (alínea i do Art. 47º do Dec. Leg. Reg. N.º 19/2008/A de 8 de Julho).


2.4 RESTAURO DA ERMIDA JESUS MARIA E JOSÉ (SÉC. XVIII) -1983.

A ermida Jesus, Maria e José, construção anexa ao desaparecido solar do Visconde da Praia, considerada um valor patrimonial edificado, religioso, histórico e paisagístico, foi restaurada pela Sociedade Indústria Açoreana Turística Hoteleira (IATH), no âmbito da construção do Hotel Bahia Palace. No adro da ermida encontram-se expostas peças de cantaria provenientes das ruínas do solar.

A sociedade gestora deste hotel tem mantido e valorizado, num contexto ajardinado, o antigo pombal de cantaria pertencente à histórica quinta de regalo.


2.5 COMEMORAÇÕES, MEMÓRIA HISTÓRICA E PATRIMÓNIO HIDROELÉCTRICO.

O início da hidroeletricidade e da iluminação elétrica no concelho de Vila Franca do Campo motivou dois ciclos comemorativos promovidos pela Empresa de Eletricidade dos Açores (E.D.A.-E.P.), em 1990 e 2000, com a estreita colaboração da Câmara Municipal vilafranquense. Estas celebrações conjugaram, de forma notável, a produção da memória e do património histórico e museológico da eletricidade micaelense e açoriana, a homenagem à figura pioneira do Engenheiro José Cordeiro, a expansão do aproveitamento hidrelétrico da ribeira da Praia e da rede elétrica nas ilhas, a aposta inovadora em novos recursos energéticos (energia eólica, geotermia, energia das ondas) e uma dinâmica afirmação da E.D.A. e dos seus dirigentes, no contexto regional.

No ciclo comemorativo de 1990, destaca-se a publicação de um Esboço Histórico da eletricidade nos Açores, a inauguração da unidade museológica da Central da Praia (1911-1974) e a edição do primeiro número da Revista EDA (Março, 1990). O referido Esboço Histórico foi elaborado com o objetivo de dar a conhecer o sector elétrico açoriano à população das ilhas. Neste sentido, o Conselho de Administração da Empresa, presidido por Américo Natalino de Viveiros, de 1984 a 1989, convidou o Almirante Ernesto Carneiro Allen Júnior, que pertencera ao Conselho de Gerência 7, a realizar uma monografia da eletrificação dos Açores. O Almirante não pôde concluir o projeto por ter adoecido e o Conselho de Administração decidiu contratar o Engenheiro Técnico na reforma, Luiz Augusto Teixeira de Simas (1924-2000), natural de Vila Franca do Campo e sobrinho-neto do Engenheiro José Cordeiro, para efetuar o referido estudo, concretizado com a empenhada colaboração de Luís Miguel Rodrigues Martins, então estudante da licenciatura em História da Universidade dos Açores.

O Esboço Histórico da Electrificação dos Açores (1990, 2.ª ed. 1997) traça a memória histórica da empresa, aborda os primórdios da iluminação nas ilhas e analisa os sucessivos processos evolutivos de eletrificação nos diferentes concelhos das ilhas de São Miguel, Terceira, Faial, São Jorge, Pico, Flores, Santa Maria e Corvo, dedicando o último capítulo ao projeto geotérmico.

No ano de 2000, Vila Franca do Campo centralizou a Comemoração do 1.º Centenário da Inauguração da “Luz Elétrica” nos Açores (1900-2000), que envolveu a abertura ao público da exposição 100 Anos da Energia Elétrica nos Açores, no Centro Cultural, uma reconstituição histórica no Jardim Dr. António José da Silva Cabral, um jantar evocativo do início do século, no Convento de São Francisco, e a edição pela E.D.A. de duas obras coordenadas pelo funcionário da empresa e investigador, Dr. Luís Miguel Rodrigues Martins: 1.º Centenário da Luz Elétrica nos Açores (18 de Março de 2000) e Engenheiro José Cordeiro, esboços e desenhos técnicos... A E.D.A. patrocinou igualmente a publicação do conto histórico Luzsombra do jovem escritor e artista plástico vilafranquense Mário Roberto.

Os dois ciclos comemorativos da Luz Elétrica contribuíram decisivamente para fundamentar e promover o valor histórico e a patrimonialização do sistema hidroelétrico da Praia, no contexto da eletrificação do arquipélago e do país, valorizando igualmente a sociedade e a cultura vilafranquenses no espaço regional.


2.6 MUSEALIZAÇÃO DA CENTRAL DA PRAIA (1911-1974).

Em Março de 1989, o Conselho de Administração da EDA deliberou ceder ao município de Vila Franca do Campo as estruturas denominadas Central da Praia (1911-1974) e Central da Vila (1900-1972) 8.

A Central da Praia, integrada no lugar classificado da Praia (1982-2008), foi restaurada no âmbito de um projeto de cooperação entre a Empresa de Eletricidade dos Açores e a Câmara Municipal de Vila Franca do Campo 9. Os trabalhos tiveram a colaboração do Museu Carlos Machado de Ponta Delgada (Dr. António de Oliveira) e do Museu de Vila Franca do Campo, responsável pela reposição de objetos complementares que tinham desaparecido (lavatório, jarra, mesa de trabalho…) e pela colocação de discretos elementos interpretativos (reproduções de documentos históricos, fotografias de protagonistas do aproveitamento hidroelétrico, quadro luminoso com esquema técnico).

A estrutura musealizada foi inaugurada como pólo do Museu de Vila Franca do Campo, no dia 25 de Março de 1990 10. A sua manutenção e abertura ao público ficaram a cargo da Câmara Municipal de Vila Franca do Campo, com a participação da família que habita ao lado da Central.


2.7 PROJECTOS MUSEOLÓGICOS NA RIBEIRA DA PRAIA.

Em Novembro de 1989, a E.D.A. projetou realizar uma exposição temporária sobre a história da iluminação, chegando a reunir uma coleção de peças 11. Na altura, defendeu-se a opinião de que a idealizada exposição temporária pode e deve ser o início de uma exposição permanente ou até de um pequeno museu monográfico dedicado à história da iluminação, projeto …de grande valor científico, cultural e educativo 12.

Em data posterior, os painéis da exposição temporária dedicada à Eletricidade dos Açores e uma valiosa coleção de material elétrico foram colocados pela E.D.A. na Central musealizada, com a finalidade de se desenvolver o denominado Museu Hidroelétrico da Praia.

No ano de 2007, esta coleção foi inventariada no quadro das atividades conjuntas do Museu de Vila Franca do Campo e do Centro de Estudos Etnológicos da Universidade dos Açores, com o objetivo de se programar a futura exposição permanente, iniciativa indissociável da recuperação do edifício.

Na sequência das comemorações do 1.º Centenário da Luz Elétrica dos Açores, o Dr. Luís Miguel Rodrigues Martins elaborou um Projeto Museológico e Observativo do Sistema Hidroelétrico da Ribeira da Praia, ilha de São Miguel, visando uma candidatura ao Programa Operacional para a Cultura, do III Quadro Comunitário de Apoio. Nos objetivos do projeto, destaca-se a valorização do património histórico da E.D.A., através do núcleo museológico composto pelas quatro fábricas da luz 13 (centrais históricas).

Para além de descrever com rigor todo o sistema hidroelétrico, Luís Martins identifica as intervenções realizadas e a realizar a nível de cada central e respetivos espaços envolventes (zonas de intervenção). A proposta defende também a construção de um anexo à Nova Central da Praia, onde se instalaria um gabinete de apoio, funcionando como plataforma de receção dos visitantes 14.

Nas ações a desenvolver destaca-se a inventariação do património existente na zona de intervenção: centrais elétricas, casario, moinhos, fontanários, etc., assim como o desenvolvimento de um Projeto de Arqueologia Industrial e a criação de um parque temático 15.


2.8 PATRIMÓNIO MOLINOLÓGICO DA RIBEIRA DA PRAIA.

Em 1996, o Governo Regional estabeleceu por Decreto Regulamentar as normas de classificação e o sistema de apoios à conservação e recuperação dos moinhos de vento e de água da Região Autónoma dos Açores, considerados de interesse patrimonial, arquitetónico e paisagístico (DLR n.º 32/96/A de 13 de Julho). Em resoluções posteriores, foram classificados sistematicamente como imóveis de interesse público os moinhos das diferentes ilhas constantes nas listagens anexas aos diplomas.

Os moinhos de Água d’Alto não constam das referidas resoluções, mas presumia-se que os moinhos arruinados da ribeira da Praia tinham sido protegidos pela classificação do lugar, revogada em 2008.


1 Áreas …2005: 6, 51.
2 Áreas…2005: 50-53.
3 Goes, 1994 e Constância, 2005.
4 Paz, 1994.
5 No decurso da festa do dragoeiro, centrada no lançamento de um livro do engenheiro Ernesto Goes, editado pelo referido Centro, o escritor e jornalista Manuel Ferreira propôs a criação de uma Rota do Dragoeiro em São Miguel. Na ocasião, procedeu-se à plantação ritual de 13 dragoeiros, inauguraram-se exposições temporárias de fotografia, de bibliografia e artefactos de dragoeiro e lançou-se uma medalha alusiva à valiosa árvore, da autoria de Cristiano Toste. Festa do Dragoeiro. Ribeira Chã, 30 de Outubro de 1994 (Programa desdobrável). Paz, 1994. O Padre João Flores também encomendou à Cerâmica Vieira da Lagoa uma coleção de onze pratos pintados representando e consagrando os principais dragoeiros dos Açores (nove) e das Canárias (dois). Informação da Dr.ª Maria Lourdes Pacheco (Museu da Ribeira Chã).
6 Sousa, 2009: ofício SAI-DRA 2008/167 de 15/01/2008.
7 Simas, 1997: 11, 15.
8 Revista…: 25.
9 L. Martins, 2000: 20.
10 Simas, 1997: 92-94. De acordo com Luís Simas, a Central da Praia foi transformada em Museu da Eletricidade (Museu Municipal de Eletricidade de Vila Franca do Campo). Simas, 1997: 92 e índices.
11 R. Martins, 1989a e 1989b.
12 R. Martins, 1989 a.
13 L. Martins, s/d: 8.
14 L. Martins, s/d: 6.
15 L. Martins, s/d: 9.