Desde que as populações começaram a instalar-se nos Açores, a escassez de água potável foi uma das principais condicionantes ao povoamento destas ilhas. Para fazer face a esta contrariedade, construiu-se, um pouco por todo o arquipélago, um valioso património hidráulico constituído por estruturas de captação, adução, distribuição e armazenamento de água, como poços-de-maré, cisternas, levadas e aquedutos.
Os aquedutos, do latim aqua (água) e ducere (conduzir), são construções geralmente em madeira ou pedra, destinadas à condução de água por canais ou galerias, de um local para o outro. A condução de água era efetuada em superfície livre, de montante para jusante, de forma a garantir uma inclinação compatível com o escoamento, em regime lento, assegurando, deste modo, a integridade destas estruturas.
O transporte de água era efetuado de 2 modos: de forma elevada, com recurso a arcos, quando atravessavam obstáculos topográficos como vales, ribeiras e montes, ou, de modo subterrâneo, através de túneis ou condutas, preconizadas em barro, quando atravessavam aglomerados urbanos.
A construção dos primeiros aquedutos, na ilha de São Miguel surge por alvará do Rei D. Manuel I, datado de 22 de julho de 1521, que determina a construção de um sistema de condução de água proveniente da serra à, então, vila de Ponta Delgada. Segundo Gaspar Frutuoso estas águas viriam do “oriente este pico das ovelhas - escreve - estar quási em direito pela terra dentro, arriba da cidade de Ponta Delgada, perto da fonte d´agua que vae d´ali a ela, de cuja frescura a melhor que há na ilha, bebem os moradores da cidade e das partes de redór dela, que custou muito a leva-la por longos caminhos de alcatruzes e não custa menos conservá-la”.
É de supor que alguns dos aquedutos, que então se construíram, por ordem de D. Manuel I, fossem em madeira, muitas vezes designados de pau, dispostos em calha, de maneira a que a água circulasse com facilidade. Daí o aparecimento da palavra pau em diversos topónimos micaelenses. “ Exemplo frisante disso - escreve o investigador Dr. Humberto de Bettencourt - foi, nessa cidade (Ponta Delgada), o nome antigo que ainda chegou aos nossos dia, da Rua Pau do Conde, assim por sobre ela ter existido, durante largo tempo, uma dessas calhas de madeira, por onde corria água que vinha canalizada da banda dos Pinheiros abastecer o Poço do Capitão Donatário de S. Miguel”.
Outro exemplo da antiga canalização por meio de um pau em forma de calha, parece estar no topónimo Água de Pau, que segundo Gaspar Frutuoso é devido à existência de uma ribeira e do pau onde, primitivamente corria água. Ainda segundo o mesmo investigador micaelense, o vocábulo pau, aplicado no sentido de conduta de água, aparece-nos em alguns documentos do séc. XIX.
No séc. XVII, por questões de saúde pública e de manutenção, estas precárias canalizações em calhas de madeira e argila foram sendo substituídos por aquedutos simples de pedra basáltica, sendo que atualmente, ainda é possível observar à superfície testemunhos destes aquedutos, sob a forma de arcadas.
O maior e mais emblemático troço dos aquedutos da ilha de São Miguel é, sem dúvida, o “Muro das Nove Janelas”, assim conhecido em virtude dos seus nove arcos, cinco superiores e quatro inferiores. Apesar do nome (Nove Janelas), existe ainda mais um arco, na base, que serve de passagem à água do vale. Estes arcos, além da sua função de elevação, permitem a circulação do vento sem nenhum impedimento, condição essencial por se situarem em zonas de grande altitude e ventosas.
O traçado do Muro das Nove Janelas apresenta-se sobre a forma de 21 arcos de volta perfeita e contrafortes nos dois lados, um modo eficaz de garantir maior sustentabilidade à estrutura e, na parte superior, uma calha ou conduta de pedra, por onde a água circula, com uma extensão aproximada de 250 m. Cândido Abranches, no “Album Micaelense”, de 1869, refere-se do seguinte modo a este aqueduto: “No meio das serras, na que tem o nome de Serra Devassa, por ser logradouro público, e quase junto à sua nascente, há uma série de arcos por cima dos quais passam as águas, tendo de distância em distância vigias. No começo destes há um elevado muro reconstruído em 1830, a que se dá o nome de muro das nove janelas, em razão de outras tantas aberturas em forma de pequenos arcos que tem; no meio há um grande servindo de base e dando escoamento às águas que da serra emanam; quatro outros pequenos ficam acima deste e em andar superior mais cinco nos intervalos dos quatro. Estes arcos ou janelas foram abertos para dar passagem ao vento que com fúria reina naqueles lugares, no inverno”.
Este aqueduto foi mandado construir pela Câmara Municipal de Ponta Delgada e destinava-se ao transporte das águas provenientes da Lagoa do Canário e Lagoas Empadadas, à cidade de Ponta Delgada, numa extensão de mais de uma dezena de quilómetros.
Este aqueduto integra ainda o Muro do Carvão, um troço em alvenaria de pedra, composto por diversos arcos de volta perfeita e com uma extensão de aproximadamente 150 m, que se situa junto ao pico com o mesmo nome. Nos extremos do muro existem duas câmaras repartidoras de caudal, conhecidas como “arquinhas”.
Supõe-se que este aqueduto terá sido desativado aquando da construção da Adutora Velha, em 1888, com o aproveitamento das abundantes nascentes localizadas na Serra de Água de Pau.
Situado junto ao Pico do Vigário, na freguesia das Feteiras, podemos encontrar um troço de notável beleza, conhecido por aqueduto da Água Nova. Esta estrutura é composta por 9 arcos abatidos, que atravessam o caminho agrícola da Grota do Figueiral e o vale da Grota da Água Nova, por uma extensão aproximada de 70 m.
O traçado deste aqueduto encontra-se muito bem descrito desenvolvendo-se a partir da Lagoa do Canário, passando pelo lado poente do Pico das Éguas, onde recebe nova captação de águas provenientes da Lagoa Rasa (Serra Devassa) e da nascente do Jacinto Cunha, através da arquinha dos Santos, seguindo posteriormente para sudeste até aos depósitos de água das Alminhas, na rua do Paim, e em seguida para a fábrica de Santa Clara, perfazendo uma extensão total de cerca de 15 quilómetros. Atualmente é ainda utilizado pela fábrica de açúcar da SINAGA, através da captação das águas provenientes da Lagoa Rasa, durante a fase de laboração da beterraba. Não se conhecem datas precisas relativas à edificação deste aqueduto, embora estime-se que seja contemporâneo à construção da antiga fábrica do álcool de Santa Clara.
Na freguesia dos Ginetes, junto à Fonte do Sapateiro, é possível observar um aqueduto formado por um único arco, datado de 1778, que transportava a água da nascente para os fontanários da freguesia bem como para os bebedouros dos animais.
Reza a lenda que o nome desta fonte está relacionado com um sapateiro, natural desta freguesia, que ao esquecer-se de trazer o medicamento da cidade para a mulher, que se encontrava mal dos intestinos, recolheu as águas desta fonte e entregou à mulher como sendo o presumível remédio. A mulher ao beber este “precioso” líquido começou a sentir-se melhor e assim espalhou-se os poderes milagrosos desta fonte medicinal por toda a população.
Associado a este aqueduto também é possível observar um bebedouro e um conjunto de “pias” comunitárias, muito utilizadas em tempos idos para as mulheres da freguesia lavarem as roupas. Estes locais eram espaços de convívio e representam um símbolo da domesticidade, da tradição e dos tempos em que o acesso à água era uma labuta diária.
No sítio do Valado Velho, junto ao Pico da Cova, nos Remédios da Lagoa, existe um aqueduto constituído por vários troços, com imponentes arcos, alguns com mais de 8 m de altura, que atravessam o vale da Ribeira Seca.
Este aqueduto destinava-se ao abastecimento das águas provenientes das nascentes da Janela do Inferno até à antiga fábrica de destilação de álcool da Lagoa, propriedade na altura, da Empresa Bensaúde & Companhia.
Na antiga Canada Larga, em Santa Cruz da Lagoa, é possível observar um troço deste aqueduto, com cerca de 70 m de comprimento, constituído por um único arco de volta perfeita, profundamente encaixado no aglomerado urbano.
Além destas estruturas de arco de volta perfeita, também foram construídos túneis, na qual se destaca um em pedra com 49 m comprimento e o outro escavado, em terra com 72 m de comprimento, que permitia facilitar a passagem da água ao nível do solo.
Na parede da Janela do Inferno é ainda possível observar a inscrição do símbolo da SINAGA, e, em alguns troços, vestígios das antigas canalizações de barro, cozido pelas indústrias de cerâmica do concelho.
Em 1908, e numa fase de escassez de água, a Câmara Municipal da Lagoa solicita à Empresa Bensaúde um aumento do volume de água, de modo a garantir o abastecimento nos reservatórios e fontes públicas da vila. Um ano depois (?) as nascentes da Janela do Inferno foram cedidas à Câmara Municipal da Lagoa, tendo, em 1992, assinado um contrato de exploração das nascentes, por 30 anos, entre a autarquia e a Sociedade de Indústria Agrícolas Açoreana - SINAGA.
As nascentes da Janela do Inferno, em conjunto com as nascentes dos Lourinhos 1 e 2 e da Grota do Lanço, servem também a cidade de Ponta Delgada que, devido à crescente pressão demográfica, sentiu necessidade de proceder ao aproveitamento de novas nascentes, através da construção da Adutora Velha de Ponta Delgada (1888) com recurso a ferro fundido, num total de 19 km de extensão. A captação da nascente da Grota do Lanço data de 1888, sendo que as restantes origens foram captadas em 1947.
Desconhece-se a data exata da construção dos aquedutos da Janela do Inferno, no entanto conclui-se que a sua edificação coincide com a edificação da fábrica do álcool da Lagoa (1882 – 1969), para o qual servia.
Na freguesia das Furnas, a norte do campo de jogos de Santana, passando pela canada das Murtas, é possível contemplar um aqueduto com cerca de 70 m, constituído por 8 arcos de volta perfeita e um mais pequeno abatido, mandados construir em 1908, por Manuel Moniz Cabral, um furnense com grande espírito empreendedor.
Este aqueduto conduzia as águas da ribeira do Fojo para mover, através da energia hídrica, o engenho dos Alagoeiros, usado na serração de madeira. Este aqueduto também servia um conjunto de pias comunitárias, 3 moinhos de água e o Cinema do Vale das Furnas.
Devido à fragilidade das condutas de barro, frequentemente furadas pelas raízes das árvores, criando no seu interior as chamadas “raposas”, procedeu-se à substituição dessas condutas por outras em ferro fundido dúctil. Essas adutoras, também em escoamento sob pressão, permitiam assegurar pressões superiores e resistir à invasão das raposas.
Além dos aquedutos referidos, existem outros conjuntos de arcos muito interessantes, alguns dos quais, infelizmente, votados ao abandono e outros parcialmente demolidos, como o do Cabouco e o das Caldeiras da Ribeira Grande, sendo atualmente visíveis apenas as estruturas de base.
Embora muitas vezes esquecidas devido à atual facilidade no acesso à água, estas grandes obras hidráulicas e todo o seu património associado (fontanários, lavadouros públicos, bebedouros, etc.), representam um importante testemunho na história e no esforço do abastecimento público de água, que importa preservar e classificar.
Paulo Garcia (Parque Natural de São Miguel)
Alberto Duarte (Serviços Municipalizados de Ponta Delgada)
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