A água doce é uma condição natural de existência das dinâmicas formações sócio-espaciais do arquipélago dos Açores. Neste conjunto de nove ilhas, situado no meio do Atlântico Norte, as características do ciclo da água derivam do clima temperado marítimo (temperaturas amenas, pluviosidade e humidade do ar elevadas, ventos intensos, presença de nuvens e de nevoeiros), da natureza vulcânica dos solos, do carácter montanhoso das ilhas e da poderosa influência do oceano. O sistema hídrico terrestre do arquipélago é constituído pelas águas pluviais que o renovam, pelas águas de superfície (cursos de água, perenes e efémeros, depósitos naturais sob a forma de lagoas permanentes e de charcos) e pelas águas subterrâneas (aquíferos de base e de altitude/suspensos, dos quais brotam nascentes frias comuns e minerais, assim como nascentes termais).
Até ao início da ocupação humana, o ciclo da água alimentava e era regulado pelas densas florestas laurissilvas, as mais húmidas da Europa que impediram a erosão torrencial das ilhas, também perturbadas ciclicamente por fenómenos sísmicos e vulcânicos.
A influência dos regimes pluviais nos processos hidrogeomorfológicos explica as características das redes hidrográficas insulares que rasgaram vales estreitos e profundos, nas declivosas vertentes exteriores dos maciços montanhosos, drenando não só as nascentes de altitude mas também as correntes torrenciais e as devastadoras enxurradas. A pluviosidade está igualmente na origem da formação de lagoas permanentes e de charcos, nas zonas altas e no interior das crateras vulcânicas.
No século XV, inicia-se a intensa transformação dos espaços arquipelágicos e a nova sociedade estruturou comunidades urbanas e rurais, substituiu generalizadamente as florestas por sistemas agro-silvo-pastoris, instalou artes e indústrias, extraiu matérias-primas, alterando profundamente o ambiente biofísico e afectando o ciclo da água, indispensável à produção e à reprodução quotidiana da natureza-cultura das ilhas.
Nos processos evolutivos de organização dos espaços insulares, as relações com as águas doces foram sempre de dependência e, consequentemente, tiveram até hoje carácter prioritário e essencial, muito embora tivessem sido marcadas pela desigualdade, tanto na distribuição espácio-temporal dos recursos hídricos como no acesso aos mesmos.
O necessário conhecimento das águas doces com finalidades práticas baseou-se em percepções e representações interpretativas, produzidas numa relação directa e experimental de actores individuais com o ambiente natural, acabando por mobilizar também formas de conhecimento descritivo e científico.
As representações culturais do ambiente, as formas de organização socioeconómica e político-administrativa prevalecentes e os sistemas técnicos adoptados condicionaram a classificação jurídica das águas (bens imóveis públicos ou particulares), as diferentes estratégias de acesso, apropriação, utilização e gestão dos recursos hídricos pluviais, superficiais e subterrâneos, com vista à satisfação de necessidades individuais e colectivas, em contextos rurais e urbanos, públicos e privados.
UM REGIME PLUVIAL ATLÂNTICO
As águas pluviais, de regime acentuadamente sazonal, eram a principal fonte de água doce, tendo sido recolhidas directamente e armazenadas em construções especializadas, abertas ou cobertas, assim como em grandes recipientes de madeira e cerâmica.
As construções abertas recolhiam água destinada sobretudo ao consumo de animais e, mais raramente, à produção agrária e industrial. Na ilha Graciosa, particularmente afectada pela escassez de água, destacam-se dois grandes pauis de origem natural, existentes no espaço central da Vila de Santa Cruz da Graciosa e que, antes da impermeabilização do fundo, eram alimentados também pelas marés. Na mesma ilha, construíram-se inúmeros tanques murados (poços), situados à beira dos caminhos e, tal como os pauis, eram de uso comum . No século passado, o desenvolvimento da pecuária nos Açores generalizou a construção de tanques de alvenaria de pedra nas pastagens (bebedouros). Na ilha de São Miguel, a água das chuvas foi recolhida em tanques a céu aberto usados para alagar linho (séc. XVI) , regar estufas de ananás (sécs. XIX-XXI) e decantar as argilas na antiga Fábrica Vieira da Lagoa (Porto dos Carneiros) (sécs. XIX-XX). Já nos finais do século XX, divulgaram-se os reservatórios escavados no terreno e impermeabilizados com geomembranas (lagoa artificial do Cabrito, ilha Terceira…).
As cisternas domésticas, construídas junto às habitações, têm planta interior rectangular e são parcialmente enterradas, podendo ter depósito de terra batida ou de pedra rebocada. Os poços batidos (sudoeste da ilha Terceira e Faial), de terra e barro compactados, são cobertos por abóbada de berço, em pedra queimada, tendo porta e escada de acesso ao interior, num dos topos. As cisternas de alvenaria de pedra (tanques), frequentes nas ilhas do grupo Central e Ocidental, caracterizam-se pela cobertura côncava, que apara directamente a água das chuvas, recolhendo também a precipitação dos beirais, por meio de calhas, drenando-a por um orifício central, protegido por ralo. No grupo Central, este modelo de cisterna, mas em escala reduzida, foi construído nas vinhas e junto às adegas. A água das cisternas, usada para beber, cozinhar e lavar, era higienizada por um peixe (Carassius auratus), capturado nas lagoas interiores e era tirada com o auxílio de um balde de madeira, pela porta, situada num dos topos ou na cobertura. Na zona central da freguesia de São Mateus (ilha Terceira), um reservatório de águas pluviais, construído no adro da Igreja Nova, alimentava um chafariz público.
Em todo o arquipélago, a água das chuvas era igualmente recolhida em pipas e grandes talhões de barro cozido, uma produção da ilha de Santa Maria, objecto de exportação para as restantes ilhas. Os talhões, por vezes embutidos numa base de pedra para maior estabilidade, eram colocados no exterior das casas, recebendo a água dos beirais, por meio de calhas, e chegaram a ser embutidos no topo de muros (Convento da Esperança, Ponta Delgada). Eram ainda fixados com argamassa num canto das lojas das casas urbanas (Ponta Delgada), onde mantinham a água fresca. Por vezes, os talhões de Santa Maria eram usados em séries de dois ou três, a fim de aumentar a capacidade de armazenamento do grupo doméstico.
LENÇÓIS DE ÁGUA
As superfícies de água do interior das ilhas, de difícil acesso, no passado, servem de bebedouro aos animais e foram outrora lavadouros das mulheres das freguesias próximas e até relativamente distantes, e nelas se alagou o linho, técnica de maceração destinada a separar as fibras têxteis das lenhosas.
Os lençóis de água existentes na vertente nascente do Maciço das Sete Cidades foram utilizados para abastecimento público da cidade de Ponta Delgada, mantendo-se actualmente as captações da Lagoa do Canário e conservando-se ainda o longo aqueduto de alvenaria de pedra (Muro das Nove Janelas, 1817) que conduzia a água da Lagoa das Empadadas. A Lagoa Rasa (Serra Devassa) abasteceu a Fábrica de Santa Clara (Ponta Delgada), indústria de álcool (1884-1905) e açúcar (1906-) que chegou aos nossos dias.
As lagoas insulares têm desempenhado igualmente funções recreativas ligadas à pesca desportiva e à navegação de recreio, desde meados do século XIX. As espécies piscícolas (perca, truta, carpa…) foram introduzidas por particulares e, no século passado, pelos Serviços Florestais que regulamentam a pesca nas águas interiores do arquipélago . Na segunda metade de oitocentos, cultos e empreendedores proprietários da ilha de São Miguel iniciaram a navegação de recreio nas lagoas das Sete Cidades e na das Furnas, utilizando embarcações de tábua trincada, a remos e à vela, abrigadas em construções à beira da água . Estas duas lagoas, situadas no interior de crateras vulcânicas de grande dimensão, foram intensamente semiotizadas, com significados mítico-simbólicos (século XVI) (Lenda das Sete Cidades), paisagísticos (cenografia e estética), ambientais e patrimoniais, tornando-se emblemas identitários da ilha de São Miguel e poderosos recursos turísticos (séculos XIX a XXI).
A FORÇA DAS CORRENTES
As ribeiras, sobretudo as perenes, foram determinantes tanto na localização como na organização dos núcleos populacionais e, para além de terem sido utilizadas no próprio curso para lavar roupa, para macerações e para pesca, forneceram água destinada a gastos domésticos, lavadouros públicos, regas, viragem de terras, actividades transformadoras, recreio e, como fonte de energia natural, tiveram uma importância decisiva nos processos de industrialização do arquipélago. Neste caso, a apropriação da força hidráulica estava condicionada pela dimensão e pela distribuição desigual das linhas de água nas vertentes montanhosas, pela declividade e traçado dos leitos, factores dependentes das características do relevo, pela variação do caudal ao longo do ano, pela acessibilidade das ribeiras e pela distância que as separa dos lugares habitados.
O aproveitamento da força motriz dos caudais para accionar aparelhos motores obrigou à derivação da água por meio de açudes, levadas e canais (valas). Os engenhos hidráulicos foram implantados nas margens das ribeiras, ficando sujeitos ao perigo das enxurradas, a jusante de represas e ao longo de canais de derivação, como é o caso da Ribeira dos Moinhos de Angra do Heroísmo, uma levada em cantaria de pedra aparelhada, que alimentou o maior complexo de indústrias hídricas da ilha Terceira, e da vala da Condessa (Ribeira dos Moinhos), na Ribeira Grande, que foi o mais importante Centro moageiro da ilha de São Miguel.
Nos Açores, os cursos de água moveram centenas de moinhos (azenhas e de rodízio), excepto na ilha Graciosa, tendo accionado igualmente serras de água, pisões de pastel, engenhos de açúcar (São Miguel, século XVI) e de esmagar uvas . Na segunda metade de oitocentos, e nas duas primeiras décadas do século XX, as rodas hidráulicas tiveram um papel inovador nas iniciativas industriais que se desenvolveram em espaços urbanos e periurbanos de Angra do Heroísmo (pregos, 1875; papel, 1879; tabaco, 1885, 1923; unidade de moagem e serração, sécs. XIX-XX), assim como em espaços rurais da Ribeira da Praia (engenho de serragem e pregos, 1878), da Povoação (engenhos de debulhar trigo da Ribeira dos Bispos, 1854?; da Lomba do Botão, século XIX; do Faial da Terra, século XIX-XX) e das Furnas (engenho de moagem, serraria e hidroelectricidade, 1908), na ilha de São Miguel.
Os engenhos hidráulicos foram objecto de vários processos de patrimonialização e musealização. Em 1996, o Governo Regional estabeleceu por Decreto Regulamentar as normas de classificação e o sistema de apoios à conservação e recuperação dos moinhos de vento e de água da Região Autónoma dos Açores, considerados de interesse patrimonial, arquitectónico e paisagístico . Em resoluções posteriores, foram classificados sistematicamente como imóveis de interesse público os moinhos das diferentes ilhas constantes nas listagens anexas aos diplomas. Em 1997, Mário Moura publicou um projecto de percurso pedestre dos moinhos da Ribeira Grande, no quadro da implementação do ecomuseu da terra dos moinhos de água . A Câmara Municipal da Povoação promoveu a reconversão museológica do notável engenho de debulhar trigo da ribeira dos Bispos (Lomba do Loução), aberto ao público em 2004, como Museu do Trigo.
Graças ao empenhamento do Eng.º José Cordeiro (1867-1908) e da florescente empresa que criou, a produção de hidroelectricidade, aproveitando torrentes em declive e cascatas, por meio de tomadas de água e condutas forçadas, inicia-se em 1897, na Ribeira da Praia, onde se construiriam cinco centrais, sendo a última inaugurada em 1991. Em São Miguel, o aproveitamento hidroeléctrico estendeu-se aos caudais da Ribeira Grande (Salto do Cabrito, 1902-1972 e Fajã Redonda, 1927) e da Ribeira dos Tambores (Furnas) (Central dos Tambores, 1909, Central do Canário, 1929-1985, e Canário II). Na ilha das Flores, os habitantes instalaram sistemas motores nas levadas dos moinhos, na década de 30 do século passado, produzindo energia para autoconsumo e, em 1967, iniciou-se a produção pública de electricidade numa central mista, alimentada parcialmente pela Ribeira de Além da Fazenda. Em 1967, na ilha do Faial, entrou em funcionamento uma Central Hidroeléctrica, construída na zona posterior do edifício das Termas do Varadouro, situado na orla costeira.
A electricidade hídrica dos Açores tem sido objecto de estudos históricos patrocinados pela EDA que também promoveu a reconversão da Central da Praia (1911-1974) em Museu Hidroeléctrico, inaugurado, como pólo do Museu de Vila Franca do Campo, em 1990.
As ribeiras micaelenses favoreceram algumas iniciativas relevantes no âmbito da produção agrária. Nas lombas da Povoação, o efeito dinâmico das correntes de água foi utilizado, por derivação, para virar terras, facilitando os arroteamentos promovidos pelos grandes proprietários locais, no século XIX. Na caldeira das Furnas, cultivam-se inhamais de qualidade, em terrenos alagados (alagoeiros de inhames) que adquiriram também valor estético e ornamental.
Na ilha de São Miguel, os cursos de água têm desempenhado relevantes funções lúdicas e estéticas. Na década de 40 do século XIX, o visconde Duarte Borges da Câmara Medeiros (1791-1872) construiu nas proximidades da sua casa solarenga da Fajã da Praia um aprazível e cenográfico tanque de recreio, alimentado por uma derivação da ribeira com o mesmo nome. Os cursos de água das Furnas, nomeadamente a Ribeira das Pedras, a Ribeira Amarela, a Ribeira dos Tambores (Ribeira Quente) e sobretudo a Ribeira das Murtas tiveram uma importância central na fertilização e na concepção paisagística dos excepcionais parques e jardins, criados na segunda metade de oitocentos pelo citado visconde da Praia e por outros membros da elite económica e cultural micaelense.
Nas ribeiras permanentes dos Açores, pescaram-se eirós e tainhas que subiam a corrente e, no século XX, foram introduzidas trutas para fomentar a pesca desportiva.
AQUÍFEROS VULCÂNICOS E ÁGUAS NATIVAS
As águas subterrâneas dos Açores foram objecto de apropriação em todas as ilhas e, actualmente, são consideradas um recurso natural de importância estratégica. A água dos aquíferos de base, por vezes salinizada, era captada em poços escavados por técnicas manuais, o que permitiu obter água em espaços particularmente secos e distantes das ribeiras.
Na zona nordeste da ilha Terceira (Ramo Grande), as grandes casas agrícolas tinham tradicionalmente o seu poço que fornecia água para uso doméstico. Os poços de maré (água salobra), com bocas de cantaria, existiram em várias ilhas e foram particularmente importantes e numerosos na ilha do Pico (aquíferos costeiros) e no interior da ilha Graciosa (Guadalupe, 1850, 1911) . Em Ponta Delgada, a Fábrica de Açúcar de Santa Clara (SINAGA, SA) recorre a dois poços de água salobra para lavar a beterraba sacarina e, em 1937, a fábrica de cervejas e refrigerantes Melo Abreu (1893) abriu um poço de água salobra para fabrico de gelo e refrigeração.
Os aquíferos de altitude (suspensos) alimentam nascentes de água potável que, por iniciativa municipal, foi captada, conduzida, armazenada em reservatórios e distribuída para consumo geral, em fontanários e chafarizes, normalmente com bebedouros anexos, e também em lavadouros públicos. Na ilha Graciosa, destacam-se, pela sua dimensão arquitectónica, quatro grandes reservatórios, enterrados e em recintos fechados, construídos em alvenaria de pedra rebocada e cobertos por abóbadas com respiradouros, suportadas por fiadas de arcos assentes em pilares (Santa Cruz, 1863 e 1866, Praia, 1868 e Guadalupe, 1869).
O sistema de abastecimento público era controlado pelo poder municipal, que devia velar pela sua manutenção e limpeza, e concedia água às freguesias, casas particulares, instituições religiosas (misericórdias, mosteiros…), instalações militares, estabelecimentos comerciais, industriais, hospitalares, balneários municipais (Ponta Delgada, 1942) e outros edifícios públicos. A água recebida da Câmara podia ser também armazenada para suprir carências das épocas de estiagem, em reservatórios cobertos, como é o caso dos existentes na Fortaleza do Monte Brasil (1596) (Angra do Heroísmo) , no Convento da Esperança (séc. XVIII) (Ponta Delgada), dotado de artístico frontispício e nas casas abastadas do Ramo Grande, as singulares caixas de água, construídas com grandes lajes aparelhadas.
Alguns proprietários de terrenos com nascentes captavam e conduziam a água para fontes privadas, frequentemente de uso comum, ou para actividades agrícolas e industriais . A partir do século XIX, também as empresas industriais procuraram adquirir nascentes, o que lhes permitiu controlar o acesso à água, sem depender dos poderes públicos. Actualmente, na Ribeira Seca da Ribeira Grande (São Miguel), a água de nascentes particulares é utilizada para lavar tufo vulcânico, com a finalidade de extrair areia.
Desde 1954, em Angra do Heroísmo, as águas captadas nos aquíferos da Furna de Água e do Cabrito, conduzidas numa conduta forçada, accionam as turbinas de três centrais hídricas montadas em cascata (Nasce d'Água, São João de Deus e Cidade) , enfraquecendo o caudal da Ribeira dos Moinhos e motivando a reconversão de algumas azenhas em moagens. Ao longo da história dos Açores, a competição pelo controlo das nascentes e pelo consumo da água suscitou o antagonismo de interesses públicos e privados que se agravava em épocas de maior escassez.
A partir da década de 50 do século XX, as câmaras municipais foram instalando redes de abastecimento público com zonas de pressão, o que levou ao progressivo abandono dos fontanários.
Na última década do século XIX, na ilha de São Miguel, algumas nascentes frias de água mineral, com interesse económico, turístico e regional, começaram a ser aproveitadas por indústrias de águas engarrafadas: no Maciço do Fogo, explorou-se a Água das Lombadas (1895) (Ribeira Grande) e no Maciço das Furnas, a Água do Alcântara (1899), Serra do Trigo (1899-1980), Água da Helena (1951), Gloria Patri (1994) e Magnificat.
As fontes termais de aquíferos de base têm sido objecto de aproveitamento terapêutico na ilha de São Miguel (Balneário termal da Ponta da Ferraria, 1880 e Balneário da Ladeira da Velha), na ilha Graciosa (Termas do Carapacho, 1890?), na ilha do Faial (Termas do Varadouro, 1909) e na ilha das Flores (Costa do Lajedo).
As fontes térmicas minero-medicinais da grande hidrópole das Furnas foram intensamente utilizadas para fins curativos e, a partir de 1760, construíram-se inúmeros balneários por iniciativa de abastados proprietários, da Câmara de Vila Franca do Campo (1815) e do Estado (1863), que edificou um notável estabelecimento balnear (Banhos Novos), actualmente muito descaracterizado . Na vertente norte do Vulcão do Fogo, as Caldeiras da Ribeira Grande, já utilizadas no século XVII para fins medicinais, foram beneficiadas com a construção de balneários (Casa das Termas), em 1811 e a concorrida Caldeira Velha foi classificada como Monumento Natural Regional, em 2004.
Nas caldeiras de águas quentes das Furnas, cozeram-se vimes (Caldeira dos Vimes, 92ºC.), escaldaram-se aves (Água da Caldeira, 86º C.), cozeram-se inhames (Caldeira dos Inhames, 95º C.) e actualmente cozem-se maçarocas de milho e castanhas (Caldeira do Esguicho, 97º C.).
A partir do início da segunda metade do século XX, furos de captação, realizados por máquinas pesadas, nas ilhas dos Grupos Oriental e Central, permitiram aproveitar a água de aquíferos de profundidade (120 a 200 metros), contribuindo para melhorar a qualidade sanitária das águas de consumo.
ÁGUAS QUOTIDIANAS E ÁGUAS RITUAIS
A água associa-se ao fogo na cozinha da casa, o Centro da vida doméstica, sendo utilizada na alimentação e na higiene. Quando não se dispunha de água no domicílio, era preciso ir buscá-la a fontanários e chafarizes que, embora já existentes no século XVI, só se divulgaram na segunda metade de oitocentos.
Nos Açores, o penoso transporte de água, à cabeça ou ao ombro, era sobretudo uma tarefa das mulheres da casa que utilizavam recipientes de madeira, predominantes nas ilhas dos grupos Central e Ocidental, e de cerâmica, comuns nas duas ilhas do grupo Oriental. Porém, tanto na zona Ocidental da ilha de São Miguel como na ilha Terceira, homens e mulheres também acarretavam água em barris estreitos e alongados, com pequena asa de ferro lateral, o que facilitava o transporte ao ombro ou à cabeça. Nos principais Centros urbanos do arquipélago (sécs. XIX-XX), existiam vendedores itinerantes de água (aguadeiros) que serviam quem precisava e podia pagar.
A água era armazenada na cozinha em talhões de barro mais pequenos, produzidos nas olarias de Santa Maria, São Miguel e Terceira (Angra do Heroísmo), com morfologias distintas, e vendidos nas restantes ilhas do arquipélago. Nalguns casos, a água tinha de ser filtrada antes de ser consumida, recorrendo-se para o efeito a filtros de rocha vulcânica (ignimbrito…). A ilha Terceira foi o mais importante Centro produtor de filtros de pedra que se destacavam pela ornamentação esculpida.
A centralidade da água na natureza-cultura dos Açores manifesta-se nas funções que desempenha tanto nas cerimónias religiosas de católicos, protestantes e judeus, como nos ritos do ciclo do Carnaval e nas festas dos Santos Populares.
As festas de Carnaval assinalam a transição do tempo de Inverno para o tempo de Primavera e caracterizam-se por práticas de transgressão, desordem e por excessos permitidos. Neste ciclo, as ruas, espaços de comunicação e de sociabilidade, transformam-se em campos de batalha, de flores e, sobretudo, de água, esguichada por meio de grandes seringas metálicas ou arremessada em limas de cera ou sacos de plástico (Ponta Delgada).
No arquipélago açoriano, à semelhança do que acontece noutras áreas culturais da Europa, as Festas de São João celebram ritualmente a água e o fogo, no tempo central do ciclo festivo dos santos de Junho (Santo António, São João, São Pedro), que se associa ao solstício de Verão. De acordo com as crenças tradicionais, a noite de São João é santa e nela todas as águas são bentas: as da atmosfera (sereno), as depositadas na natureza (lagoas), as que correm nas fontes construídas nos espaços humanizados e as do mar salgado. O poder sobrenatural do sereno manifesta-se na mutação da textura e do sabor das favas e do milho torrados, transformados em alimentos tenros e saborosos, e na eficácia dos elementos de adivinhação, deixados ao relento por mulheres, raparigas e rapazes.
A água deixada num alguidar ao ar livre, ou recolhida nas fontes antes do sol nascer, tinha o poder de embelezar e rejuvenescer o rosto, e também de o aromatizar (com flores e ervas de cheiro), de fazer bem à saúde de quem a bebia em jejum e era utilizada para fazer fermento que, renovado, levedava todo o ano um pão que também afastava as influências negativas.
O culto da água manifestava-se na tradição de enfeitar as fontes, ao alvorecer, com verduras, papel recortado e, na década de 80 e 90 do século passado, com objectos da vida tradicional (Vila Franca do Campo). Em São Miguel, na madrugada de São João, inúmeras famílias de diferentes freguesias da ilha deslocavam-se para a proximidade das lagoas, onde festejavam o dia com farnéis, balhos e cantigas acompanhadas à viola. Nas várias ilhas do arquipélago, no amanhecer desse dia santo, os habitantes também acorriam à costa e purificavam-se nas águas do mar que adquiriam virtudes curativas.
O escritor e etnólogo micaelense Armando Côrtes-Rodrigues (1891-1971), que cultivou o franciscanismo místico e as tradições simples da ruralidade, numa perspectiva regionalista, celebrou a água feliz, boa, humilde e útil e cantou as fontes da gente da terra, investindo-as de significados do universo imaginário com o qual se identificava.
NOVOS PERCURSOS DA ÁGUA
As formas de conhecimento e as múltiplas estratégias de selecção e apropriação jurídico-política, administrativa, técnica e simbólica dos recursos hídricos do arquipélago (águas pluviais, superficiais e subterrâneas) traduziram-se em sistemas relacionais que privilegiaram e hierarquizaram espaços ecológicos distintos. Ao longo do processo histórico, os habitantes estabeleceram com as águas diferentes tipos de relações: directas e prioritárias, de subsistência alimentar; técnico-sociais, utilizando-as como matéria-prima, matéria instrumental, força motriz e recurso terapêutico; estéticas e lúdico- desportivas assim como rituais e simbólicas, em contextos festivos e cerimoniais.
A apropriação estética, lúdica, paisagística e cenográfica de algumas lagoas naturais e daquelas que foram sendo construídas em parques e jardins oitocentistas mobilizou e intensificou relações sociais, capitalizadas pelas famílias dos grandes proprietários, coleccionadores de espécies raras e exóticas.
A partir de década de 70 do século passado e do início do século XXI, os recursos hídricos vulcânicos foram investidos e reinvestidos de novos valores que reformularam ou reforçaram o estatuto social das águas doces na natureza-cultura açoriana. Em 2003, foi aprovado o Plano Regional da Água, com a finalidade de assegurar a qualidade e o abastecimento para consumo humano . Paralelamente, as caldeiras dos vulcões, associadas a lagoas interiores, são representadas como património natural único e objecto de processos de classificação e reclassificação como Áreas Protegidas (Paisagens Protegidas e Reservas Naturais), ou no quadro da Rede Natura 2000, como Sítios de Interesse Comunitário e Zonas de Protecção Especial . A criação e a implementação de uma rede regional de áreas protegidas, em virtude do elevado interesse botânico, faunístico, ecológico, paisagístico e geológico, produziram uma nova e vinculativa relação social com a natureza, tornada dominante e emblemática da cultura açoriana contemporânea.
Ponta Delgada, 7 de Março de 2012.
Rui de Sousa Martins
Professor de Antropologia Cultural da Universidade dos Açores
Director do Museu de Vila Franca do Campo
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Moura, Mário Fernando Oliveira. 1997. Memórias dos moinhos da ribeira Grande. Um percurso pedestre à terra dos moinhos de água. Ribeira Grande, Amigos dos Açores.
Pinho, Joana Balsa de. 2009. “As cisternas do Monte Brasil – contributo das fontes contabilísticas para a sua história”, Atlântida, 54. Angra do Heroísmo, Instituto Açoriano de Cultura: 65-76.
Santos, João Marinho dos. 1989. Os Açores nos sécs. XV e XVI, 2 vols. Angra do Heroísmo, Direcção Regional dos Assuntos Culturais.
Simas, Luiz Augusto Teixeira de. 1997. Esboço histórico da electrificação dos Açores. Ponta Delgada, Empresa de Electricidade dos Açores (EDA) (1.ª ed. 1990).
Teodoro, Hermano Miguel Melo. 2003. Caldeiras da Ribeira Grande. Ribeira Grande, Museu da Ribeira Grande.
SÍTIOS DA INTERNET
Martins, Rui de Sousa. 2011a. Parque da Energia Hídrica da Ribeira da Praia. Água d'Alto, São Miguel-Açores. Vila Franca do Campo, Museu de Vila Franca do Campo.
Recursos hídricos
Nota: Trabalho elaborado para prefaciar a seguinte obra, em processo de publicação pela Câmara Municipal da Lagoa:
MONTEIRO, Sandra Maria Gonçalves. 2011. A distribuição pública de água na vila da Lagoa, São Miguel-Açores. Ponta Delgada, Universidade dos Açores. Trabalho elaborado para a unidade curricular de Museologia e Antropologia Cultural do Mestrado em Património, Museologia e Desenvolvimento.
01. Dias, Elias, Melo e Mendes: 2007: 41.
02. Cruz, 2004: 261-279. Freire, Costa, Cruz, Coutinho & Antunes, 2009.
03. Sobre a apropriação das águas no direito português anterior ao código civil, consulte-se Moreira, 1960, 1: 19 e segs. Para os Açores, veja-se Dias, 1944, 1: 170-200.
04. Bruno, 2010: 39, Inventário: 240, 241.
05. Frutuoso, 1977-1981, 2: 65, 66.
06. Borba, 2008: 208.
07. Constância et alia, 2001:85-87, 108-111.
08. Constância et alia, 2001:143.
09. Albergaria, 2000: 204, 205, 216
10. A zona das Sete Cidades foi classificada como paisagem protegida pelo Decreto Regional n.º 2/80/A de 7 de Fevereiro. Áreas … 2005: 62-67.
11. Moura, 1997 e 1999.
12. Santos, 1989, 1: 216-226.
13. Ferreira e Forjaz, 2009: 269, 270 (Furnas). Martins, 2011a: 2 (Ribeira da Praia).
14. DLR N.º 32/96/A de 13 de Julho.
15. Moura, 1997: 8, 10, 11, 69-92. Alguns municípios dos Açores (Angra do Heroísmo, Ribeira Grande, Nordeste…) têm adquirido moinhos de água, conservando-os como valores patrimoniais ao serviço da cultura e do turismo.
16. Sobre a história da hidroelectricidade dos Açores, consulte-se Simas, 1997.
17. Martins, 2011a: 3.
18. Botelho, 1959:124, 125.
19. Corrêa, 1924: 97, 98.
20. Albergaria, 2000: 172-198 (Furnas). Martins, 2011a: 1 (Ribeira da Praia).
21. Cruz, 2004: 23.
22. Esta técnica de captação é documentada por Frutuoso, 1978: 16.
23. Bruno, 2010: 39, 40, Inventário: 91.
24. Ferreira, 1993: 56.
25. Bruno, 2010: 37, 38 e Inventário: 115, 116, 178, 223, 224, 277, 278.
26. Pinho, 2009.
27. Caldas, 2004: 43, Inventário: 204 e 241.
28. A água subterrânea chegou a ser captada em galerias (São Jorge). Cruz, 2004: 155.
29. Simas, 1997: 211-218.
30. Sandra Monteiro (2011) analisou detalhadamente o abastecimento público na Lagoa, um município da costa sul da ilha de São Miguel.
31. Ferreira e Forjaz, 2009: 242-248.
32. Cruz, 2004: 27, 28 (Ladeira Velha). Lima, 1943: 177, 178 (Varadouro).
33. Correia, 1924. Ferreira e Forjaz, 2009: 447-453.
34. Teodoro, 2003. Cruz, 2004: 25-30.
35. DLR N.º 5/2004/A, de 19 de Março.
36. Forjaz e Serralheiro, 1998.
37. Cruz, 2004: 21-34.
38. Dias, 1944, 1: 107.
39. Martins, 2011: 113-115.
40. P. Ferreira, 1993:
41. Côrtes-Rodrigues, 1928: 4.
42. DLR N.º 19/2003/A de 27 de Fevereiro. Cruz, 2009: 90 e segs.
43. Ambiente… 2005: 6. |