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Poços de Maré na ilha do Pico Mónica Goulart
 
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A relação que hoje temos com a água é completamente diferente daquela que os nossos antepassados açorianos experimentaram. Continua...
Mónica Goulart – Arquiteta
Gabinete Técnico da Paisagem Protegida da Vinha do Pico
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Ilustrações Poços de Maré
Mónica Goulart – Arquiteta
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A relação que hoje temos com a água é completamente diferente daquela que os nossos antepassados açorianos experimentaram. E localizando-nos no tempo, este facto não está tão distante de nós como possa parecer – a título de exemplo na ilha do Pico, só a partir dos anos 80 (século XX) é que a maioria das freguesias ficaram abastecidas pela rede de abastecimento público de água. E mesmo os tanques e cisternas que hoje são pouco ou nada utilizados, e que proliferam pela paisagem edificada na ilha, são construções relativamente recentes, cuja construção não será mais antiga do que há cerca de 150 anos atrás.
Alguma da água provinha de lagoas e pauis, e também das ribeiras que nos seus leitos formavam poços, poços estes que eram periodicamente limpos pelos seus utilizadores para que a água não apodrecesse devido à decomposição da matéria orgânica.
Um facto curioso, é o facto de na Prainha, haver a figura do “juiz da ribeira”, que era um indivíduo responsável pela limpeza e manutenção da ordem no acesso à água da ribeira (por exemplo, controlava que o despejo de águas de lavagem acontecesse em zonas em que essas águas não voltassem novamente à ribeira acabando por contaminar as águas retidas em outros poços a jusante).
Comparativamente às outras ilhas deste arquipélago, o Pico é uma ilha vulcânica jovem, sendo por isso que o seu solo é roto, e as ribeiras não eram nem são permanentes, havendo também poucas nascentes com caudais suficientemente grandes para abastecer a população com fartura.

Perante a escassez de água nesta ilha, os Picarotos adoptaram uma solução que lhes permitia aceder a água para uso geral, água essa que sendo na sua generalidade salobra, era o melhor que se podia ter durante os séculos de povoamento até ao século passado – essa solução foi a construção de poços de maré nas zonas costeiras da ilha.

Nos nossos dias persistem mais de meia centena de exemplares dispersos pela costa de toda a ilha do Pico, fora aqueles que já foram soterrados e desactivados, cujo número se desconhece. Neste aspecto, o Pico será a ilha dos Açores onde existem poços de maré em maior quantidade.
Tal como ir buscar lenha, ir buscar água era uma rotina diária dos nossos antepassados: aqueles que viviam mais perto, transportavam-na em gamotes ou em potes à cabeça percorrendo quilómetros diários, enquanto que aqueles que viviam mais longe e tinham meios para isso, transportavam-na em pipas nos carros de bois. Era usual formarem-se grandes filas de gente à espera da sua vez para tirar água: indubitavelmente, este era um local comunitário e de grande importância social, embora muitos destes poços pertencessem a privados.
E as mulheres transportavam a roupa suja de casa para a lavarem nas pias que existiam junto dos poços de maré. Salvo algumas excepções, a quantidade de roupa que cada pessoa tinha era muito reduzida, resumindo-se ao traje do domingo e a dois ou três trajes de trabalho – roupa de “transiar”. E a roupa de trabalho que era vestida no início da semana servia para vestir a semana toda!

A higiene diária das pessoas era muito diferente da que praticamos: o banho geral acontecia só uma vez por semana, havendo relatos de haverem pessoas que só tomavam banho geral umas poucas vezes no ano. Diariamente, lavava-se a cara e os pés (porque a generalidade das pessoas andavam descalças) e pouco mais, começando pelos mais novos que se lavavam primeiro na água limpa, até aos mais velhos que se lavam na água em que todos os outros já se haviam lavado.
Na sua generalidade, em casa a água era depositada em talhões de barro, e o seu uso era muito racionado, e racional: água potável era só para beber e cozinhar, e sempre que possível, provinha das poucas fontes de água doce existentes na ilha.
Mesmo assim, também é um facto que a própria água salgada servia para fazer muita coisa – pura ou destemperada com água doce - era utilizada para cozinhar, nomeadamente para cozer batatas doces e inhames. A água salgada também era utilizada para a cozedura dos vimes necessários para a construção de cestos, e para a lavagem dos próprios cestos, quer após a sua construção, quer após as vindimas.
A ponta Este da ilha é onde se encontram menor número de poços de maré, não havendo mesmo registo de ter havido algum, especificamente nas freguesias da Ribeirinha e Piedade, onde a população se abastecia de água em nascentes que jorravam junto à costa, e no Paul da Ribeirinha – que também abastecia a população da Calheta do Nesquim.
Na Vila das Lajes, também acontece outra situação única na ilha: o facto da cota máxima do terreno onde está implantada a parte central da vila ser inferior a 10 metros, permitiu que em muitas propriedades privadas fossem escavados poços de maré para uso exclusivo privado, havendo situações em que os próprios poços de maré desembocavam no interior dos próprios edifícios.

Conhece-se muito pouco sobre os métodos de construção dos poços de maré. Todavia, perante a proliferação de poços de maré que se encontram no Ilha do Pico, e tendo em conta a sua localização, sujeito-me a alegar que o local era escolhido de acordo com o enquadramento de um determinado aglomerado urbano, uma determinada via, uma determinada propriedade ou determinado edifício, verificando-se que os nossos antepassados pareciam confiar que em qualquer local onde escavassem um buraco profundo iriam encontrar água: a análise sobre a localização dos poços de maré existentes, levam a esta conclusão. Contudo, a determinação do local era sem dúvida, um factor determinante. Primeiro era necessário procurar indícios de escorrências de água doce nas zonas costeiras: através da observação de manchas espraiadas no mar junto à costa em dias de mar muito manso e sem vento, ou através da temperatura da água do mar junto à costa, e por intermédio de vestígios em fendas de rochas da costa. Depois, tendo em conta presumíveis alinhamentos e suposições sobre o local ideal, começava-se a abrir um grande buraco, retirando a pedra existente, e partindo lajes de rocha até finalmente encontrar a água. Depois, começavam-se a construir as paredes do poço – que podiam ser de forma circular, rectangular ou quadrangular, entulhando o grande buraco em torno das paredes (pelo lado exterior) com os materiais provenientes da escavação. Ao nível da superfície do terreno, era construída a boca do poço, que era constituída por grandes lajes de pedra rigorosamente talhada, engatadas entre si com gatos de ferro, assentadas ao alto segundo um rectângulo ou quadrado, com altura suficiente para que ninguém caísse para o interior do poço. A secção e dimensão da boca do poço é bastante variável, rondando no entanto uma área de cerca de 1m².

A sua implantação está localizada em cotas de terreno que poderão ir desde os 4 aos 20 metros de elevação relativamente ao nível médio das águas do mar. E outro facto característico é o seguinte: quanto mais profundo é o poço, mais frio é o ar que sai do seu interior.

Nos nossos dias, é difícil imaginar o quão difícil foi a construção destes poços. Contudo, as necessidades de outrora até nos fazem parecer hoje que tudo aquilo foi fácil e simples de fazer. Mas se pensarmos um pouco mais, e tivermos em conta que muitos destes poços ultrapassam largamente uma dezena de metros de profundidade, e que o solo onde são escavados é rochoso, composto na sua maioria por lajes de basalto que tiveram que ser partidas com ferramentas manuais e à força de braços, aí vergamo-nos perante a força, determinação e capacidade de sobrevivência dos nossos antepassados.

Aquilo que fazemos hoje com a água, demonstra que não temos a mais pequena noção da preciosidade deste bem.

Mónica Goulart – Arquiteta
Gabinete Técnico da Paisagem Protegida da Vinha do Pico