Furtado entendia que os efeitos sociais e da insularidade deviam influenciar o homem açoriano, completamente por estudar do ponto de vista antropológico. Esta interpretação estava, provavelmente, influenciada pela leitura de Darwin para quem «a observação de muitos pequenos pontos de diferença entre espécies, que, tanto quanto a nossa ignorância nos permite julgar, parecem ser bastante insignificantes, não devemos esquecer que o clima, a alimentação, etc., provavelmente produzem algum efeito, ligeiro e directo» (On the origin of species... , 1859, 1.ª edição: 85 ).
Neste contexto, escrevia, em carta com data de 18. 10. 1882, dirigida a Adolfo Coelho: «as condições económicas e sociais de existência são tão outras do que eram há apenas vinte anos, que eu cuido assistir à transformação de que o grupo humano micaelense pode ser susceptível. Agarrar o mecanismo da transformação, tal é a preocupação metafísica (?) de nós outros. Eis o que explica a minha febre.» (cf. Arruda, 2002).
Numa outra carta com data de 13. 11. 1882, dirigida a Teófilo Braga, explica: «na ilha [de S. Miguel], [...] há diferenças capitais no tipo fisionómico, na moral, no vestuário, no timbre e inflexão de voz, de freguesia para freguesia. De ilha para ilha há também diferenças ainda profundas. Isto revela vivo interesse, revelando origens diversas, e, autorizadas pela insularidade do meio, fazendo-nos esperar resultados de muito valor. [...]. Nós sabemos, e todos os viajantes notam, que o aspecto físico e mental do fundo da população micaelense difere dos do fundo da população portuguesa do continente mesmo dos povos do norte, de onde é opinião geral que descendemos. Parece pois haver uma diferenciação da raça» (cf. Arruda, 2002).
Como formulá-la de um modo seguro sem documentos sobre o povo continental? De que elementos se formou a população actual? Pelo que respeita à classe mais ou menos ilustrada temos um grande elemento para conhecer seguramente a sua origem étnica e os factos mais directos da sua constituição mental, nas genealogias. Mas o povo, o camponês, aquilo exactamente que eu devo e quero estudar?» (cf. Arruda, 2002).
O seu objectivo está indicado em Furtado (1884): «A par dos factores gerais que vão produzindo a evolução de todos os seres, os organismos insulares têm sobre si o peso de diversas outras condições que aceleram e peculiarizam a transformação. Nos Açores, os moluscos terrestres, os insectos e as plantas silvestres, e até os animais domésticos, contam maior ou menor número de formas mais ou menos distintas. Etnologicamente o homem açoriano está diferenciado também. Fornecer os materiais para ir seguindo a marcha da diferenciação antropológica que produzirá; estudar o meio, o movimento essencial da população, as condições económicas e sociais de existência, os sentimentos e a inteligência, os elementos antropológicos de que é formado o grupo micaelense actual, isto é, estudar aonde vivemos como crescemos, como vivemos, como sentimos e pensamos, e quais os nossos caracteres físicos, tal é o objecto despretencioso todavia, deste trabalho... Investigar a nossa origem particular e fixar o estado actual da manifestação antropológica, julgamos por enquanto ser o resultado principal do estudo que fazemos.».
Furtado (1884) não encontrou respostas claras para as questões postas mas registou: «Parece-nos ter dado a conhecer diferenças importantes entre os camponeses micaelenses e os do continente que tiveram com eles uma origem comum. Não nos inclinamos porém a supor-lhes um valor que elas não possam ter. Julgamos ter já feito alguma coisa útil dando-as a conhecer como estímulo para estudos futuros mais completos.».
No que respeita ao mecanismo da verdadeira diferenciação, acrescenta: «a distinção nos caracteres antropológicos, devemos buscá-los, pelo contrário, por enquanto, não nas simples condições do meio, mas simplesmente, numa redução e selecção casual dos elementos antropológicos ajudados durante quatro séculos por um isolamento profundo e constante» (Furtado, 1884).
Furtado (1883) estudou a variação da circunferência craniana do que chamou “indivíduos ilustrados, camponeses e mulheres” e concluiu que: (a) a circunferência craniana dos indivíduos mais ou menos ilustrados é maior do que a dos camponeses que ocupam uma posição intermédia entre a daqueles e das camponesas que é muito inferior; (b) a circunferência craniana aumenta com a altura do corpo; (c) a circunferência das camponesas é mesmo inferior à dos camponeses mais baixos; e (d) não sendo os indivíduos mais ou menos ilustrados de uma estatura superior à dos camponeses, a sua superioridade craniana deve ser atribuída ao maior desenvolvimento da sua inteligência. Para Furtado (1883) a interpretação destes resultados está influenciada pela ideia de que «há em fisiologia uma lei perfeitamente verificada, de que os órgãos se desenvolvem pelo exercício». O cérebro e o crânio não poderiam escapar a esta lei». Também, segundo Mayr (1995), Darwin, pelo menos nas primeiras edições de The Origin of species, admite o uso, de um carácter, e a falta dele como um mecanismo evolutivo importante. Mais, segundo Lamarck, as alterações adquiridas durante a vida de um indivíduo como resultado de adaptações funcionais activas, quase intencionais, podiam, de certa forma, ser impressas no genoma, fazendo, deste modo, parte da herança transmitida às gerações seguintes.
Bibliografia
Arruda, L. M. (2002), Correspondência científica de Francisco de Arruda Furtado. Introdução, levantamento e estudo de Luís M. Arruda. Ponta Delgada, Instituto Cultural de Ponta Delgada.
Darwin, C. (1859), On the origin of species by means of natural selection, or the preservation of favoured races in the struggle for life. Londres, John Murray.
Furtado, F. A. (1883), A inteligência e o tamanho da cabeça. A inteligência da mulher e a do homem. A Época: ano II, nº 81, 21 de Julho.
Furtado, F. A. (1884), Materiais para o estudo anthropologico dos povos açorianos. Observações sobre o povo michaelense. Ponta Delgada, Tip. Popular, rua do Saco, 10.
Mayr, E. (1995), Introduction. In : Charles Darwin, On the origin of species. Cambridge, Massachusetts and London, England, Harvard University Press: vii-xxvii. |
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